O privilegiado foro de Flávio Bolsonaro e a fragilidade do sistema de Justiça
Sob o título “Foro privilegiado. O retorno.“, o artigo a seguir é de autoria do promotor de Justiça Roberto Livianu, presidente do Instituto Não Aceito a Corrupção.
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O debate sobre o Foro Privilegiado foi priorizado durante um período expressivo de nossa história recente, envolvendo a sociedade, avançando no Congresso a PEC 333/17 de Álvaro Dias, aprovada na Comissão Especial do Senado, no plenário, nas Comissões da Câmara e dormita na gaveta da respectiva Presidência, há quase ano e meio, vez que o poder de pautar a respectiva votação no plenário é monopólio de Maia.
Chegou-se a voltar ao assunto no início deste ano, cogitando-se uma ideia de dividir competências – mantendo foro privilegiado para matéria cautelar, como prisões preventivas, bloqueios de patrimônio e buscas e apreensões e foro comum para o mérito.
Parecia a construção de um novo privilégio disfarçado. Ou seja, seria a eliminação do foro sem eliminar. Mas para isto, tudo teria de recomeçar e ficou onde estava, sem decisão.
O Instituto Não Aceito Corrupção entregou em mãos aos deputados abaixo assinado digital com mais de 720.000 assinaturas de brasileiros pedindo o fim do foro.
Afinal, ninguém pode pretender estar acima da lei numa democracia por ser antiético e injusto.
Na Espanha, Suíça, Holanda e Estados Unidos, para ficar em alguns poucos exemplos, não existe foro privilegiado. Em Portugal, exige-se apenas autorização legislativa para o processo.
Na Itália existe o foro privilegiado exclusivamente para o presidente da República. No Brasil, existe até para prefeitos. E temos municípios com 1.000 habitantes.
Foro privilegiado subverte princípios processuais fundamentais e a própria organização do sistema de justiça, já que tribunais são estruturas concebidas para reapreciar causas, e não, para colher provas e instruir processos, prejudicando-se o princípio do duplo grau de jurisdição ou da recorribilidade das decisões.
Todos têm o direito de pedir um novo julgamento. É da essência da dinâmica da distribuição da justiça.
Fere-se também o princípio do juiz natural (juiz aleatório), que busca evitar a figura do juiz de encomenda, previamente sabido.
Isto fica mais sério ainda quando lembramos que o STJ e STF são compostos por juízes escolhidos politicamente, que poderão ter de julgar quem os escolheu e nomeou, o qual, ainda que indevidamente, pode esperar gratidão.
Fruto deste debate, em maio de 2018, em relação a parte da questão, o pleno do STF reposicionou-se sobre este tema, de forma histórica e contundente. Passou a entender que só se poderia falar em foro durante o mandato e por atos praticados estritamente em decorrência dele.
Em virtude desta decisão, de acentuado sentido republicano, centenas de processos foram corretamente enviados à primeira instância. Mas ainda sobravam todas as outras situações não abrangidas pela decisão, que seriam alcançadas pela PEC 333/17.
Em que contexto, o STF decidiu, logo depois dos 130 anos da abolição jurídica da escravidão e no ano dos 30 anos da Constituição, restringir o alcance do foro?
Relembremos. Naquele momento, pesquisa do Datafolha mostrava mais uma vez que, para os brasileiros o principal problema do país era a corrupção (21%), à frente da saúde, violência/segurança, desemprego e educação.
Pesquisa do mesmo Instituto de 2015 já havia apontado nesta direção e isto pode ser interpretado como aumento do grau de consciência em relação a este grave problema.
A mesma pesquisa, na mesma linha, trouxe a alentadora resposta de que, para 84% das pessoas ouvidas, a Operação Lava Jato (símbolo icônico do combate à corrupção) deveria continuar, evidenciando que os brasileiros estão mais sintonizados em relação ao tema, o que não nos autoriza concluir, no entanto, qual o impacto que isto gerará na definição de voto nas eleições de 2018.
A pesquisa ouviu as pessoas logo após o julgamento do habeas corpus que acabou sendo negado pelo STF, ensejando a prisão do ex-presidente Lula. E para 57% das pessoas ouvidas é mais justo prender após condenação em duas instâncias judiciais (36% entendem que só se pode prender após passar o processo por todas elas).
Eis que chegamos a junho 2020. Um corajoso juiz natural aleatório como define o sistema processual penal -–Flávio Itabaiana, da 27.a Vara Criminal do Rio de Janeiro–, examinando tudo aquilo que lhe é apresentado pelo Ministério Público do estado do Rio de Janeiro e pela Polícia Civil do mesmo estado, determina a quebra de sigilo do senador Flávio Bolsonaro.
Determina o mesmo em relação a Fabrício Queiroz, assim como sua prisão, realizada recentemente em Atibaia, numa propriedade pertencente ao advogado particular de Flávio Bolsonaro e do presidente Jair Bolsonaro.
E vale registrar que foi importante para as investigações um relatório do antigo COAF (hoje UIT) apontando atípica movimentação de um R$ 1.200.000,00 em conta bancária de Queiroz oriunda de dinheiro em época de pagamento de salários com simultaneidade de saques e depósitos em contas de assessores.
A suspeita é que cerca de R$ 2.000.000,00 tenham sido apropriados no esquema da “rachadinha do Queiroz”, que ele coordenava, recebendo parte dos salários dos assessores, fruto de prévio ajuste neste sentido – negociata com dinheiro público, circulando criminosamente.
Isto talvez sirva para podermos entender a briga em torno do tema COAF.
Quando se investiga corrupção, deve-se seguir o rastro do dinheiro e houve luta política no Congresso para que o organismo não pudesse ter toda a eficiência possível, sob o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a serviço de operações anticorrupção, votando o Congresso levá-lo para o Economia para obviamente embaralhar este jogo.
No entanto, depois de todo este caminhar, do clamor social, da decisão da Suprema Corte do país, a 3ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio, por 2×1, decidiu desconsiderar o STF. Deu foro privilegiado a Flavio Bolsonaro, retirando o caso das mãos do juiz natural Itabaiana, transferindo a competência para o Órgão Especial do Tribunal.
O que isto significa, na prática? Que os 25 desembargadores deste colegiado serão os novos julgadores, por força desta decisão.
Por enquanto, o que já foi decidido está válido. Mas a advogada do senador Flávio Bolsonaro promete que se empenhará em lutar para anular as decisões até agora tomadas, ainda que tenham sido preservadas pela 3ª Câmara, por enquanto. Mesmo após declaração enfática feita por seu cliente em 2017 nas redes sociais ao lado do pai, hoje presidente da República, totalmente contrários ao foro.
Os promotores deixam de ter atribuição investigativa, que passa a estar concentrada nas mãos do procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussem, que pode, se quiser, recorrer para preservar a competência do Juiz Itabaiana. Mas esta discussão em torno de competência pode se arrastar até uma decisão final do próprio STF.
Lembrando que um quinto dos desembargadores provém de escolhas políticas feitas pelos últimos governadores do Rio – Moreira Franco, Garotinho, Rosinha, Cabral e Pezão, entre mortos e feridos, por ora as decisões do juiz Itabaiana estão preservadas, mas correm risco de ser revogadas pelo Órgão Especial do Tribunal.
Tudo isto revela a fragilidade e insegurança do sistema, que precisa de uma configuração definitiva que transmita respeitabilidade social. Somente assim a sociedade começará a readquirir confiança no sistema.