Em carta aberta, juiz pede ao CNJ menos restrições e mais liberdade de expressão
O artigo a seguir é de autoria de Gustavo Sauaia Romero Fernandes, juiz de direito da Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Embu das Artes (SP).
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Carta aberta ao Conselho Nacional de Justiça
Por meio desta mensagem, acreditando representar também a opinião de diversos colegas ilhados pela falta de meios de comunicação coletiva da categoria, venho falar em nome de um requisito inestimável no Estado Democrático de Direito: Poder Judiciário livre.
Lançando, desde logo, uma pergunta para reflexão: como falar em Justiça livre se os juízes, os magistrados mais próximos do povo, não se sentirem livres?
Não se trata apenas de liberdade para julgar, mas para o que a democracia garante a todos: a possibilidade de se expressar como os demais, sem que isso exclua o senso de responsabilidade do cargo. Senso de responsabilidade este que já se faz analisado em concurso público e no processo de vitaliciamento, bem como em toda decisão de seu dia-a-dia profissional.
Ouso defender que esta análise diária já é suficiente. Não requer outros meios que, no lugar de responsabilidade, trazem um elemento que a própria Constituição Federal tenta evitar: temor.
Não duvido, em momento algum, dos intentos expressos nas portarias criadas por este Conselho.
Todavia, respeitosamente considero que a ideia de expedi-las já desmerece nosso discernimento, assim como o discernimento de quem ler e ouvir nossas opiniões. Sejam eles as partes, os advogados e o restante da população.
Não soa razoável presumir que um comentário sobre tema não jurídico, mesmo que político, significa que o magistrado pautará sentenças com base nesta opinião. Para podar este risco, basta o que já é feito –exigir fundamentação de quem julga.
Evidentemente, há limites.
Mas um magistrado não precisa de normatização além das Leis Processuais e da interpretação destas perante o mundo de hoje.
Exemplo: um juiz que litiga em face de companhia aérea, por uma perda de mala, não pode ser impedido de julgar qualquer feito envolvendo tal empresa. As normas também se submetem à realidade. Uma realidade em que se vive muito mais.
Hoje é possível fazer, num dia, o que levaria semanas em outros tempos. Em tudo. Inclusive na comunicação. Fazer parte disso ajuda a compreender fatos aos quais devemos dizer o Direito. Torna o magistrado mais humilde.
Neste contexto, os magistrados nunca estiveram tão alijados do debate cotidiano. Nem mesmo entre nós.
Não temos possibilidade técnica de trocar e-mails com muitos colegas, ou participar de fóruns eletrônicos organizados.
Restam os aplicativos de conversa instantânea, em que não há condições logísticas de desenvolver argumentos, até como respeito à paciência alheia.
Soa como se a chance de articulação entre juízes fosse perigosa, quase subversiva. Somos magistrados, não militantes. E mesmo que fôssemos, onde se encontra a proibição legal de que militemos por causa comum à profissão?
Não que seja seu objetivo, mas este tipo de isolamento atinge potencialmente a personalidade do magistrado.
O juiz sob temores fica tentado a ser como o Zelig de Woody Allen. Um camaleão jurídico preocupado apenas com a própria segurança.
O mais atingido é justamente o magistrado que busca a ponderação. Os verdadeiros radicais não se intimidam com nada, nem mesmo com o senso de ridículo. Para estes até a Lei é inócua.
Já aquele que apenas queria trocar ideias pensa “por que vou expor a mim e minha família?”. Mira-se o mal e atinge-se o bem.
O juiz deveria se sentir, efetivamente, no direito de questionar até se acredita que o Judiciário está conseguindo promover a Justiça entre seus jurisdicionados. Sem receio de conselhos intimidadores, como avisos de que “criticar o Judiciário significa não acreditar em Justiça alguma e, assim, o crítico sequer deveria ser juiz”.
Isso é próprio de um modelo de tirania, não democracia. É tudo o que não se espera de perseguidores (no ótimo sentido) do valor eterno Justiça. Todo ser humano adulto precisa se questionar a cada dia. Uma sociedade humana, mais ainda.
Como conclusão destas tortuosas linhas, roga-se que não apenas este Conselho, como toda a gestão da magistratura nacional retire restrições regulamentares a comportamentos dos juízes brasileiros.
Entendo e aplaudo as perfeitas intenções, mas até as mais perfeitas intenções podem ser revistas em seus meios.
Num Brasil em que opiniões são progressivamente formadas por falsos experts, um mínimo de nossa voz auxiliaria contra o festival de insensatez.
Saberemos separar as coisas por nós mesmos. Se não soubermos, estaremos sujeitos às mesmas leis que valem para todos. Sem problemas e sem privilégios.
Com protestos de total consideração.