Criminalista mostra como desbravar a selva das leis
“É difícil entender as coisas do direito. Saber como essas coisas funcionam pode ajudar a enfrentar as inevitáveis dificuldades do dia a dia e a fugir de algumas armadilhas.”
É o que propõe o advogado Eduardo Muylaert em “Direito no Cotidiano – Guia de Sobrevivência na Selva das Leis” [Editora Contexto]. (*)
“A formação em direito exige anos de estudo e é só um ponto de partida”, diz Muylaert. “É difícil ter uma visão de conjunto, e quase impossível entender cada especialidade.”
Nas 160 páginas do livro, ele explica, em linguagem simples, as principais regras e a estrutura básica da Justiça.
A obra vai muito além de uma introdução para leigos. Os chamados operadores de direito podem se surpreender ao identificar regras que dominam relatadas em texto leve, leitura agradável, sem citações de leis, artigos, parágrafos, incisos e alíneas.
Há uma única concessão ao juridiquês, quando ele cita o casamento nuncupativo, ato jurídico feito oralmente –“um dos mais estranhos vocábulos que a ciência jurídica consagra”, diz.
O professor esclarece aspectos da crise brasileira e sugere caminhos para o exercício da cidadania.
Sem citar os fatos, posteriores à edição, um trecho remete o leitor a uma controvérsia atual: a prisão domiciliar concedida pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, João Otávio de Noronha, a Fabrício de Queiroz (ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro) e sua mulher, benefício que o STJ negou a um jovem acusado de furtar dois xampus.
Eis o que diz Muylaert:
“Os crimes contra o patrimônio têm uma grande gradação, que vão desde a subtração de uma barra de chocolate ou um vidro de xampu de valor ínfimo, até o assalto milionário aos cofres de um banco ou às cargas de ouro em trânsito pelos aeroportos.
É importante que os crimes contra o patrimônio, seja público ou particular, sejam reprimidos proporcionalmente aos danos causados.
O tratamento dispensado a quem furta uma barra de chocolate não pode ter o mesmo rigor que merece quem desvia milhões dos cofres dos governos ou das estatais, subtraindo recursos indispensáveis à saúde e à educação da população”.
A diagramação do livro de Muylaert foge do modelo habitual das páginas impressas com margens iguais. Com isso, o “Guia” permite uma leitura dinâmica e mais espaço para anotações.
O texto a seguir não é um artigo do autor. São trechos do livro reunidos aleatoriamente pelo Blog, a título de mostrar a variedade dos temas abordados.
Uma boa leitura em tempos de isolamento.
***
Pode ser aborrecido, desagradável mesmo, mas desde o momento em que acordamos, e antes mesmo de sair da cama, já temos que obedecer a algumas regras. A vida de cada um de nós é regulada de dia e de noite, desde antes do nascimento e, por incrível que pareça, até depois da morte.
Há regras obrigatórias, que podem nos deixar em má situação, ser impostas até pela força, pois para isso existem a Justiça e a polícia. Essa dita fúria legislativa acaba sendo, na verdade, um pouco sufocante.
Apesar da popularização da Justiça, ainda existe uma enorme dificuldade de acesso às coisas do direito. Vemos até autoridades e jornalistas cometendo erros e provocando grandes confusões.
Já que vivemos sob comando das leis, é melhor procurar saber como elas influem no nosso cotidiano.
Com a certidão de nascimento, as pessoas entram para o mundo do direito. Sua identidade, salvo exceções, estará definitivamente ligada ao nome que lhe foi atribuído.
O poder familiar, que inclui a guarda e educação dos filhos, legitima as determinações que não sejam ilegais ou absurdas.
Parece óbvio que as crianças e adolescentes não possam comprar armas, munições e explosivos. Nem fogos, exceto aqueles inofensivos.
A questão das autorizações para que os filhos possam viajar desacompanhados é um permanente tormento para os pais. As regras mudam com frequência, as práticas são diferentes em cada estado e por vezes envolvem burocracias assustadoras.
Quando o filme é considerado adequado apenas para maiores de 18 anos, os mais jovens não podem assistir, mesmo que acompanhados ou autorizados pelos pais. Com a popularização da internet e redes sociais, e a generalização do acesso de conteúdos on-ine (streaming), esse controle ficou muito mais difícil. E, na prática, se os pais entenderem conveniente, podem assistir em casa com os filhos menores os filmes indicados para maiores de 18 anos.
Parte da opinião pública foi convencida de que, tendo em vista a participação de menores em crimes graves, sem risco de cadeia, a idade da responsabilidade criminal deveria ser baixada para 16 anos, ou até mesmo 14 anos. Uma pregação inconsistente acha tal medida imprescindível para a diminuição da criminalidade.
O que se esquece também é que o menor que comete atos previstos como crimes no Código Penal é sujeito até mesmo a internação em estabelecimentos que, muitas vezes, são verdadeiros presídios.
O Supremo Tribunal Federal (SFT) rejeitou por unanimidade, em 2019, o pedido de flexibilização das regras do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] formulado pelo governo. Pretendia-se fosse facilitada a apreensão pela polícia de crianças e adolescentes para averiguação, ou por motivo de perambulação, mesmo sem indício de crime.
O voto é obrigatório para os brasileiros após os 18 anos. Podem votar, mesmo não tendo obrigação, os maiores de 16 anos, os maiores de 70 anos e os analfabetos.
Mesmo no quadro de descrédito de muitos políticos profissionais, podemos pensar que se eles estão lá é porque votamos neles. Qualquer transformação depende de nosso engajamento, tanto individual quanto através de grupos de pessoas ou organizações que tenham interesse em comum, ou mesmo dos próprios partidos políticos.
Somos todos consumidores. O prestador de serviços (…) responde pela reparação dos danos causados por seu trabalho. Entretanto, os profissionais liberais, como médicos, engenheiros e advogados, só são responsabilizados pessoalmente se agirem com culpa, ou seja, com imperícia, negligência ou imprudência.
Na cobrança de dívidas, é proibido expor o devedor a ridículo, ou a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone, o consumidor pode desistir do contrato no prazo de sete dias a contar da sua assinatura ou do recebimento do pedido.
Foi considerada maquiagem, por exemplo, quando a maioria das marcas de papel higiênico reduziu a metragem do papel sem a respectiva redução do preço. Com a divulgação e a rejeição dos consumidores, os fabricantes recuaram e os produtos voltaram à forma antiga.
Nossa defesa como consumidores depende não apenas da lei, mas também de permanente atenção para evitar armadilhas que a sede de lucros de alguns vai armando.
Nos filmes americanos, o proprietário que descobre petróleo no seu terreno fica rico. Aqui não, a propriedade não abrange as riquezas do subsolo, como jazidas, minas e recursos minerais.
O prédio não pode despejar água no do vizinho, e há uma distância mínima para abrir janelas ou fazer terraços. O STJ entendeu, por exemplo, que a proibição de abrir janelas, ou fazer terraço ou varanda, a menos de um metro e meio do terreno do vizinho não pode ser relativizada, mandando tampar as janelas de uma casa que não respeitava essas condições.
Todos trabalhamos, de uma maneira ou de outra. Não há outro modo honesto de ganhar a vida e se sustentar, salvo os casos raros de fortunas herdadas. Até administrar um patrimônio, entretanto, é uma forma de trabalho, nem sempre livre de estresse.
O empregado acidentado, a gestante e o portador de HIV têm estabilidade garantida por lei. Foi considerada justa causa para demissão, por exemplo, a postagem de ofensas à empresa e a outros funcionários em rede social.
Cientistas têm alertado para a realidade de 50 milhões de brasileiros que estão desempregados, ou na informalidade, sem proteção trabalhista ou previdenciária, incluindo o terceirizado, o freelancer e o casual.
O mundo do trabalho vai se transformando a cada circunstância histórica e vai se moldando a partir do jogo dos interesses em conflito. A garantia dos direitos sociais, efetivamente, nunca se faz sem luta.
Tanto na união estável como no casamento, a lei fala sempre em união de homem e mulher. O casamento entre pessoas do mesmo sexo, entretanto, é uma realidade, tendo sido autorizado por uma portaria de 2013 do Conselho Nacional de Justiça.
O Supremo Tribunal Federal já havia decidido em 2011 que é inconstitucional a distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo. Já a formalização da união múltipla ainda não foi reconhecida.
A bigamia, que consiste no casamento fraudulento de quem já era casado e não se divorciara, é crime punido com até seis anos de prisão. Já o adultério, embora seja considerado grave violação do dever conjugal, sendo causa para separação, não é mais considerado crime desde 2005.
O casamento pode ser celebrado por procuração de um dos noivos. Se um deles, até por brincadeira, declarar que não quer se casar, ou que está arrependido, não pode retratar-se no mesmo dia e o casamento tem de ser adiado. Melhor evitar essa brincadeira de mau gosto.
Em caso de doença grave, ou iminente risco de vida, o casamento pode ser realizado sem as formalidades usuais, na presença de seis testemunhas. Tal casamento é chamado de nuncupativo, num dos mais estranhos vocábulos que a ciência jurídica consagra, mas também pode ser descrito como oral, nominal ou verbal.
Segundo o IBGE, a cada ano há menos casamentos e mais divórcios, a maioria após 14 anos de união.
Há pessoas que, preparando a separação, aumentam exageradamente os gastos para demonstrar maior padrão de vida do casal. E outras que se desfazem ou escondem recursos financeiros para não demonstrar riqueza.
Não conhecemos ninguém que goste de pagar impostos, atividade que nos é imposta para alimentar o insaciável Leão da Receita. A carga tributária é pesada para os cidadãos, e sempre insuficiente para o Estado. As empresas são obrigadas a manter vários funcionários para tentar entender o sistema e cumprir todas as regras relativas aos impostos.
O Brasil está no grupo dos países mais violentos do mundo, com cerca de 70 mil assassinatos por ano, a maioria praticados com arma de fogo e contra jovens de menos de 21 anos.
Se a pessoa planejou um crime e desistiu antes de começar sua execução, não é punida. Considera-se o crime impossível se o meio usado for descabido, e aí não há punição. Pretender matar alguém por telepatia ou mediante orações, é um método considerado ineficaz pela justiça.
A acusação de roubo ou assalto está na origem do recolhimento de metade dos presos que estão em nossas penitenciárias.
A exigência de vantagem indevida pelo funcionário chama-se concussão. O oferecimento ou promessa de vantagem indevida constitui corrupção ativa, punida com a mesma pena. Esses crimes adquiriram notoriedade com as sucessivas operações da Polícia Federal que desvendaram graves conluios entre grandes empresas, especialmente empreiteiras e funcionários de empresas com a Petrobras e até com ministros de Estado, governadores e parlamentares.
Hoje somos vigiados por nossos computadores, televisões e aparelhos conectados e telefones celulares, seja para fins comerciais, seja para nos controlar mesmo.
Nosso campo de ação é limitado, mas não adianta fechar os olhos. Esse é o mundo em que vivemos. Por ora, basta entender um pouco como as normas do Direito atuam em nosso cotidiano, como influem em nossa vida diária e como podemos nos proteger.
A Constituição de 1988 sempre pode ser aprimorada, mas os princípios fundamentais que ela afirma são a garantia de que nossa democracia possa ser um caminho de liberdade, igualdade e Justiça.
—
(*) Eduardo Muylaert, advogado criminal, foi professor da PUC-SP, procurador do Estado, secretário de Justiça e Segurança Pública, e juiz do TRE em São Paulo.