Autoritarismo e Covid-19 contagiam

Neste domingo, viralizaram nas redes sociais vídeos mostrando um magistrado paulista que se recusa a usar máscara de proteção à Covid-19 e ofende um guarda municipal:

“O senhor não é polícia (…) você sabe ler?”

O CNJ (Conselho Nacional de Justiça) vai concentrar a apuração sobre o episódio em que o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, tenta humilhar um guarda municipal na praia de Santos, a quem chamou de “analfabeto”, ao ser multado, neste sábado (18), por estar sem máscara contra a pandemia.

Aparentemente, a filmagem foi feita dentro da viatura policial.

O que surpreende na “carteirada” do desembargador Siqueira –além da disciplina do guarda municipal– é o fato de o maior tribunal do país, com corregedores considerados rigorosos, não evitar a repetição de episódios semelhantes.

Siqueira já havia sido filmado em outra ocorrência na praia de Santos ao desobedecer um decreto municipal. Reservadamente, magistrados afirmam que o desembargador já foi personagem de outras ocorrências, em que teria revelado abuso de poder e desacato a autoridades.

“Isso é um verdadeiro escândalo”, disse um juiz. “O tribunal se esforça em melhorar a imagem do Judiciário e vem um sujeito desses provocar um escândalo, é horrível”, completou.

“Fosse mero juiz já tinha sido afastado”, comentou outro magistrado.

O TJ-SP publicou nota de esclarecimento neste domingo, informando que “determinou imediata instauração de procedimento de apuração dos fatos; requisitou a gravação original e ouvirá, com a máxima brevidade, os guardas civis e o magistrado”.

No comunicado, o tribunal afirmou que “não compactua com atitudes de desrespeito às leis, regramentos administrativos ou de ofensas às pessoas”. “Muito pelo contrário, notadamente em momento de grave combate à pandemia instalada, segue com rigor as orientações técnicas voltadas à preservação da saúde de todos.”

Pela manhã, o corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, instaurou, de ofício, ou seja, sem provocação externa, pedido providências. Ao assistir um dos vídeos, Martins vislumbrou “indícios de possível violação aos preceitos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman) e ao Código de Ética da Magistratura”.

À noite, o corregedor nacional emitiu um segundo comunicado. Determinou que o TJ-SP encaminhe ao CNJ o procedimento instaurado no tribunal estadual.

Martins atribuiu a unificação dos procedimentos à necessidade de “racionalização e eficiência”, evitando decisões conflitantes, atrasos e “confusão processual”.

Em geral, essa providência é tomada quando o CNJ percebe que os tribunais demoram para concluir as apurações.

Abuso de poder

O magistrado caminhava sem máscara de proteção à Covid-19 e foi abordado pela Guarda Civil Municipal, que participava de uma força-tarefa:

– O sr.pode colocar a máscara, por favor?

Ele se recusa. O guarda explica que está cumprindo o previsto num decreto municipal. [Decreto nº 8.944, de 23 de abril de 2020, do prefeito Paulo Alexandre Barbosa (PSDB), que determina o uso obrigatório de máscara facial].

– Decreto não é lei.

O guarda avisa que terá que multá-lo.

– O senhor não é polícia.

(…)

– Você quer que eu jogue na sua cara? Faz aí, que eu amasso e jogo na sua cara.

“Eu vou fazer a multa e o senhor joga na minha cara”, responde o guarda-civil.

O magistrado tenta atemorizar o guarda, e diz que vai telefonar para o secretário municipal de Segurança, coronel Sérgio Del Bel Júnior.

Eis trecho do que o desembargador falou ao telefone [afirmando que estava em contato com o secretário]:

– Del Bel, ‘pera’ um pouco. Não é possível… Você é um coronel da Polícia Militar, aposentado. Teu pai e meu sogro são os meus melhores amigos. Um guardinha falar para o coronel atender o telefone, onde você já viu isso, Del Bel?

(…)

– Precisa chamar a Polícia Militar, ou não?

– Está bom. Eu vou ficar tranquilo. Obrigado. Ele está afinando. É para receber o documento e rasgar. [sugerindo que tinha recebido uma orientação]

O guarda municipal começa a preencher o formulário da multa, e pergunta o nome do desembargador:

– Eu não sou obrigado a dar.

O guarda municipal pede o documento do magistrado.

– Você sabe ler? Leia bem com quem o senhor está se metendo“.

A prefeitura de Santos emitiu uma Nota de Repúdio.

“Trata-se de um caso de reincidência: o mesmo cidadão já foi multado em outra data por cometer a mesma infração”, afirma a nota. O desembargador Siqueira rasgou a multa (de R$ 100,00 por não usar máscara) e também foi multado por jogar lixo no chão (R$ 150,00).

Na nota oficial, a prefeitura esclarece que “a gestão das praias está sob a competência e responsabilidade do município”.

De acordo com o artigo 14 da Lei Federal nº 13.240/2015, a Prefeitura de Santos celebrou, em 19/07/17, termo de adesão com a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), por meio do qual a União outorgou ao Município a gestão das praias marítimas urbanas, inclusive bens de uso comum com exploração econômica, pelo período de 20 anos.

Outro lado

O jornal Tribuna de Santos publicou pronunciamento de Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, que se apresenta como “desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há 11 anos, sendo juiz de carreira há mais de 35 anos”.

O magistrado diz que “o vídeo é verdadeiro, o fato realmente aconteceu, mas foi tirado do contexto”. Diz que houve “verdadeiro julgamento público –ou melhor, linchamento”, sem que sua versão fosse conhecida.

“Estamos vivendo um momento conturbado, de pandemia politizada, que tem sido usada para justificar abusos, desmandos e restrições de direitos, que eu como magistrado, não posso aceitar”.

Ele diz que um dos abusos é a determinação, por decreto do uso de máscara em determinados locais.

“Os cidadãos brasileiros, entretanto, só são obrigados a fazer ou deixar de fazer algo em virtude da lei. Este preceito está na Constituição da República. Decreto não é lei, portanto, entendo que não sou obrigado a usar máscara, e que qualquer norma que diga o contrário é absolutamente inconstitucional”.

O desembargador diz que já foi abordado outras vezes pela Guarda Civil de Santos, “daí a minha exaltação”.

Ele disse que “explicou educadamente” as restrições governamentais inconstitucionais.

“Infelizmente, perseguido desde então, ontem, acabei sendo vítima de uma verdadeira armação. A abordagem foi editada e completamente diferente das que recebi antes, mas com uma câmara previamente ligada, fazendo parecer que de vítima sou o vilão”.

Siqueira diz que tomará “as providências cabíveis” para que seus direitos sejam preservados, e que está à disposição dos órgãos competentes para maiores esclarecimentos.

Obs. Com acréscimo de informações às 02h02