Possivelmente nada acontecerá com o ‘meritíssimo da carteirada’, diz Eliana

Sob o título “A carteirada do meritíssimo”, o artigo a seguir é de autoria da advogada Eliana Calmon, ministra aposentada do Superior Tribunal de Justiça e ex-corregedora nacional de Justiça.

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A sociedade brasileira se indignou com a atitude de um desembargador que, advertido por um policial por estar descumprindo lei local, acabou por afrontá-lo com a apresentação de sua identidade de magistrado, humilhou-o, jactou-se de ser uma autoridade e, ao receber multa pela infração cometida terminou por rasgar a notificação e jogar aos pés da autoridade maior naquele instante, o policial que estava no exercício de suas funções.

O Tribunal ao qual pertence o desembargador apressou-se em anunciar a abertura de um procedimento administrativo e a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça, com grande velocidade também abriu um procedimento. Todos disseram-se  indignados com uma prática que não é tão rara no Brasil. Pode-se   dizer que é até comum e vem expressa na arrogância de uma sociedade desigual:  sabe com quem está falando?

O Corregedor Nacional justificou o seu agir pela grande repercussão do acontecimento, sendo conveniente uniformizar a atividade disciplinar.

Esclareça-se que até o ano de 2012 esta avocação estava vedada pelo Supremo Tribunal Federal que não conhecia a competência concorrente do CNJ, só passível de agir em grau de recurso, ou na ausência da atuação dos órgãos dos Tribunais: Corregedoria ou Órgão Especial, exercendo assim competência subsidiária.

Efetivamente a corregedoria Nacional agiu adequada e formalmente  com a avocação da atividade censória.

Entretanto o alvoroço da mídia e a esperança da sociedade brasileira de sepultar mais uma prática inteiramente em descompasso com a modernidade das instituições, nelas incluindo o Poder Judiciário, tende a esvair-se frustrando os brasileiros mais uma vez, sequiosos de igualdade social independentemente das suas atividades profissionais: possivelmente nada acontecerá com o autoritário magistrado, protegido por uma vetusta legislação, a Lei Complementar nº 35 de 1979 – Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), antecedente à Constituição Federal de 88, nascida em pleno governo militar.

A Loman prevê no artigo 42 como penas disciplinares aos magistrados: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria compulsória e demissão.

Das seis espécies aos desembargadores só se aplicam duas; a disponibilidade e a aposentadoria compulsória.

A advertência e a censura só são aplicáveis aos juízes de primeiro grau (§ único do artigo 42), a demissão para magistrados vitalícios somente por sentença judicial após o devido processo penal (fora da alçada do CNJ e do órgão especial – artigo 26, I da LOMAN) e a remoção compulsória não alcança os vitalícios e inamovíveis e os desembargadores tornam-se vitalícios a partir da posse (artigo 22, I, “e” da LOMAN).

Será que uma carteirada será capaz de levar o CNJ a aplicar a pena de disponibilidade ou aposentadoria compulsória, ou seria uma demasia?

Fora do campo administrativo a carteirada é crime? Para alguns a tipicidade está no artigo 316 do Código Penal:

Art. 316 – Exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

E o que diz a recentíssima Lei de Abuso de Autoridade nº 13.869/2019), tão festejada pela sua modernidade? Da longa listagem dos diversos crimes previstos a carteirada praticamente não se encaixa em nenhum dos tipos, a não ser no parágrafo único do artigo 33:

Art. 33.  Exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido.

E o Código de Ética da magistratura Nacional – Resolução nº 60 de 2008? De tudo que nele consta temos como mais pertinente o  dever contido no artigo 37:

Art. 37. Ao magistrado é vedado procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções.

A transgressão de um dever funcional pode ser enquadrado como penalidade punível com a pena de disponibilidade ou aposentadoria compulsória?

Fica aqui a lembrança de que só pode ser aplicada sanção disciplinar se prevista em lei formal e material.

Com a palavra pois o Conselho Nacional de Justiça, tão diligente em sua atuação, mas extremamente limitado pela falta de instrumento legislativo capaz de fazer com que os magistrados sejam tão brasileiros como os demais, quando não estiverem no exercício da judicatura.