Sem provas, acusações de Augusto Aras geram sessão pública constrangedora
As divergências entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e a força-tarefa da Lava Jato culminaram com uma forte troca de acusações na sessão virtual do CSMPF (Conselho Superior do Ministério Público Federal), nesta sexta-feira (31).
Não há registro, no histórico do MPF, de um confronto público tão constrangedor. Houve ofensas pessoais dissimuladas e denúncias, sem provas, de irregularidades.
Aras queixou-se de informações que, segundo ele, os procuradores passariam à imprensa, sem mencionar a fonte. “Sob a voz lânguida de algum colega, existe a peçonha da covardia de não mostrar a cara, de não mostrar a sua assinatura. Todas as matérias que saem na imprensa é um procurador e uma procuradora que passa”, provocou.
Ao final das discussões, Aras disse que oferecia “um braço estendido de paz, harmonia”, pois “interesses maiores da instituição devem ser preservados”. É difícil prever uma conciliação entre os grupos que se opõem.
Esta foi a penúltima sessão em que Aras presidiu o conselho com maioria no colegiado. No dia 10, tomam posse os eleitos para a nova composição do CSMPF, entre os quais os subprocuradores-gerais Mario Bonsaglia –o mais votado na lista tríplice que Aras evitou– e José Bonifácio Borges de Andrada, vice-procurador-geral dispensado por Aras em março, surpreendendo os colegas.
Nesta sexta-feira, Aras deixou uma ameaça velada, ao afirmar que apresentará –no final da gestão– fake news que está colecionando, com nomes e provas. Disse que tentaram atingir sua família.
“Não sou leviano e nem temerário. Sei como cada um agiu”, disse Aras.
O estopim dessa nova crise foram suspeitas contra procuradores das forças-tarefas levantadas por Aras em debate online promovido, no último dia 28, pelo grupo Prerrogativas (*), que reúne criminalistas defensores de réus da Lava Jato.
Participaram do debate –sobre o tema “Os desafios da PGR em tempos de pandemia“– os advogados Alberto Toron, Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay) e Marco Aurélio de Carvalho, coordenador-geral do Prerrogativas.
Nesse encontro virtual –que Aras definiria nesta sexta-feira como “evento acadêmico”–, o PGR afirmou que a meta de sua gestão na PGR é “abrir a instituição para que jamais se possa dizer que tenha caixas-pretas”. “Lista tríplice fraudável nunca mais”, afirmou.
No dia seguinte, a força-tarefa da Lava Jato contestou:
“A ilação de que há ‘caixas de segredos’ no trabalho dos procuradores da República é falsa, assim como a alegação de que haveria milhares de documentos ocultos. Não há na força-tarefa documentos secretos ou insindicáveis das Corregedorias. Os documentos estão registrados nos sistemas eletrônicos da Justiça Federal ou do Ministério Público Federal e podem ser acessados em correições ordinárias e extraordinárias.”
Na sessão desta sexta-feira, o subprocurador-geral Nicolao Dino fez a leitura de uma “Carta aberta ao Procurador-Geral da República”, com críticas à “desconstrução” do MPF provocada por Aras [leia a íntegra da carta no final do post].
“Nunca, jamais, houve fraude em quaisquer eleições no âmbito do Ministério Público Federal, sendo absurdo cogitar-se de sua ocorrência”, sustentou o subprocurador-geral.
“Não se pode deixar de lamentar o resultado negativo para a instituição como um todo – expressando, por que não dizer, nossa perplexidade –, principalmente por se tratar de graves afirmações articuladas por seu chefe”, afirmou Dino.
“A fala de S. Exa. não constrói e em nada contribui para o que denominou de ‘correção de rumos’”, disse.
Para os signatários do documento, “um Ministério Público desacreditado, instável e enfraquecido somente atende aos interesses daqueles que se posicionam à margem da lei”.
Assinam a carta-aberta, além de Nicolao Dino, os subprocuradores-gerais Nívio de Freitas, José Adonis Callou de Sá e Luiza Cristina Frischeinsen, que também participaram da sessão virtual.
Aras iniciou sua resposta dirigindo-se a Nicolao Dino.
Eis trechos de sua manifestação:
– “Coragem não me falta. A vida exige coragem. (…) Não me dirigi, num evento acadêmico, de forma senão pautado em fatos e provas (…), que se encontram sob investigação.
– Caberá à corregedoria-geral e ao CNMP apurar a verdade, a extensão e a profundidade, e os autores e os partícipes de tudo que falei.
– Tenho provas que estão depositadas perante os órgãos competentes.
– Gostei muito de saber que o colega Nicolao Dino foi o porta-voz de alguns que fazem oposição sistemática ao PGR. De alguns que vivem a plantar fake news, que estou colecionando com as respectivas respostas para que no final da gestão eu apresente, os fake news e as respostas.
– E é muito provável que eu diga de onde saiu cada um fake news. E o faço porque, sob a voz lânguida de algum colega, existe a peçonha da covardia de não mostrar a cara, de não mostrar a sua assinatura. Todas as matérias que saem na imprensa é um procurador e uma procuradora que passa.
– Enquanto eu falo em nome próprio, sou obrigado a ouvir o repórter escrever ou dizer que ‘ouviu de um procurador ou procuradora’…
– O anonimato, mais do que inconstitucional e ilegal, ele é covarde. Eu não tenho medo de enfrentar nenhum argumento. Eu tenho o costume de enfrentar tudo que faço e digo. E não tenho o receio de desagradar, desde que esteja nos trilhos da Constituição, da lei, da moral e dos costumes e dos meus deveres com o MPF.
– Não me venha Satanás pregando quaresma.
Augusto Aras encerrou a sessão sem conceder apartes a Nívio de Freitas e Luiza Frischeisen. E disse rejeitar os conselhos de Nicolao Dino.
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Eis a íntegra da carta aberta ao PGR:
CARTA ABERTA AO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
O Procurador-Geral da República, com o peso da autoridade do cargo, e invocando o pretexto de “corrigir rumos ante desvios das forças-tarefas”, fez graves afirmações em relação ao funcionamento do Ministério Público Federal, em debate com grupo de Advogados, na noite do dia 28 de julho último.
Previna-se, desde já, que não se parte, aqui, da premissa de que o MPF esteja imune a críticas. Longe disso! Como Instituição de Estado, o Ministério Público pode e deve ser questionado.
É inerente a seu caráter republicano a existência de canais garantidores de responsabilidade, transparência, responsividade e coordenação. Pessoas e instituições também crescem por meio da crítica e da autocrítica.
O Ministério Público pode e deve ser constantemente aprimorado. Sendo composto por pessoas – passíveis de acertos e desacertos –, é suscetível ao erro. Daí a previsão legal de mecanismos de controle, revisão e aperfeiçoamento.
Mas há que se fazer a devida distinção entre crítica e desconstrução. E um líder sabe diferenciar, assim como bem sabem os demais protagonistas e observadores da história.
A crítica saudável ilumina caminhos, principalmente em tempos difíceis, renovando energias em busca de melhores estratégias de exercício funcional. Um real propósito de “correção de rumos” pressupõe espírito construtivo e empenho na promoção do bem e do fortalecimento da Instituição, gerando coragem, otimismo e esperança.
Não é essa a percepção que se tem do posicionamento adotado pelo Procurador-Geral da República. A fala de S. Exa. não constrói e em nada contribui para o que denominou de “correção de rumos”.
Por isso, não se pode deixar de lamentar o resultado negativo para a Instituição como um todo – expressando, por que não dizer, nossa perplexidade –, principalmente por se tratar de graves afirmações articuladas por seu Chefe, que a representa perante a sociedade e os demais órgãos de Estado.
Diante de tão graves desafios impostos à sociedade brasileira no momento atual – na promoção da saúde, na defesa do meio ambiente, na garantia da liberdade de expressão sem fake News, no enfrentamento da corrupção, na promoção, enfim, dos direitos da cidadania – é de se esperar e conclamar clareza de propósitos, compromisso com a estabilidade institucional e fomento à segurança jurídica.
Para tanto, é essencial o saudável exercício de lideranças, com diálogo interno e valorização de seus canais de atuação.
Isso não se confunde com “anarcossindicalismo”. Defender as prerrogativas e os instrumentos de atuação institucional não é sinônimo de corporativismo ou de quaisquer outros “ismos” que se pretenda imputar ao Ministério Público Federal.
As palavras do Procurador-Geral da República pavimentam trilha diversa e adversa, uma vez que alimentam suspeitas e dúvidas na atuação do MPF, inclusive no próprio processo de eleições internas – das quais, a propósito, S. Exa. mesmo já participou, e foi exitoso em dois momentos (eleições para o Conselho Superior, colégio de Subprocuradores-Gerais – biênios 2012/14 e 2014/16).
Um Ministério Público desacreditado, instável e enfraquecido somente atende aos interesses daqueles que se posicionam à margem da lei.
Dessa forma, é absolutamente imperativo assinalar, em defesa dos valores e da estabilidade de nossa Instituição:
i) que nunca, jamais, houve fraude em quaisquer eleições no âmbito do Ministério Público Federal, sendo absurdo cogitar-se de sua ocorrência;
ii) que dados relativos a investigações submetidos a cláusula de sigilo só podem ser compartilhados mediante autorização judicial, com devida motivação e se necessário para outra investigações, e que, portanto, a salvaguarda desse sigilo não se confunde com opacidade ou “caixa-preta”;
iii) que a independência funcional é um pilar estruturante do Ministério Público, essencial à sua atuação, sem receio de perseguições, observado, é claro, o regular funcionamento de seus canais de controle, coordenação e revisão, cuja existência legitima sua atuação;
iv) que o modelo de forças-tarefas –que tão importantes resultados têm produzido em complexos casos de corrupção em todo o Brasil, de desastres ambientais, em defesa da Amazônia e tantos outros – pode e deve ser aprimorado, mas esse aperfeiçoamento não passa pela deslegitimação de seus trabalhos ou pela desqualificação de seus membros, mas sim pelo respeito à pluralidade e pelo debate produtivo e propositivo de ideias.
Para finalizar, ao mesmo tempo em que destacamos os bons resultados obtidos pelas diversas forças-tarefas instituídas ao longos dos últimos anos, acentuamos que, a partir dessa experiência inovadora em diversas áreas de atuação funcional, é chegada a hora de o Conselho Superior do MPF analisar a proposta de regulamentação e aprimoramento em curso, com base na inafastável premissa de que somente com diálogo elevado e comunhão de bons propósitos é possível avançar na valorização da Instituição e no fortalecimento de seus canais de atuação.
Enfrentar e superar as turbulências, esse é o nosso desafio para o momento.
Brasília, 31 de julho de 2020
NICOLAO DINO – Subprocurador-Geral da República – Conselheiro
NIVIO DE FREITAS SILVA FILHO – Subprocurador-Geral da República – Conselheiro
JOSÉ ADONIS CALLOU DE SÁ – Subprocurador-Geral da República – Conselheiro
LUÍZA CRISTINA FONSECA FRISCHEINSEN – Subprocuradora-Geral da República – Conselheira
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(*) O grupo Prerrogativas foi criado há cerca de cinco anos a título de defender as prerrogativas dos advogados violadas na Lava Jato. Seus membros estão convencidos de que o processo que levou à prisão de Lula foi uma “condenação sem provas”.
Entre os inspiradores do movimento são citados Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Celso Antônio Bandeira de Mello, Sigmaringa Seixas (in memoriam) e Weida Zancaner.
São colaboradores, entre outros, Alberto Toron, Heleno Torres, José Roberto Batochio, Roberto Podval, Lenio Streck, Luís Inácio Adams, Marcelo Nobre, José Eduardo Cardozo, Marcio Sotelo Felippe, Marina Dias Werneck de Souza, Sérgio Renault, Gabriela Prioli, Gilberto Carvalho, Fabio Tofic Simantob, Felipe Santa Cruz, Fernando Haddad, Kenarik Boujikian, Rui Falcão, Leonardo Isaac Yarochewsky, Pedro Estevam Serrano, Rubens Casara, Sepulveda Pertence, Tecio Lins e Silva, Valdete Severo, e Wadih Damous.
Sobre o evento do Prerrogativas com o PGR Augusto Aras, Lenio Streck escreveu, na revista “Consultor Jurídico”:
“Para mim, que atuei por 28 anos na Instituição do Ministério Público, foi doloroso ouvir algumas coisas. O MP é maior do que isso”.
Ainda Streck:
“Augusto Aras colocou o dedo na ferida. Dói. Mas espero que disso se tire lições. Não há espaço para a formação de ilhas dentro do MP. Não há espaço para coisas secretas. Não há espaço, na República, para arapongagem, como denunciou o PGR Aras.
Agora o PGR vem ao debate público, aberto e transparente e é criticado. Já as conjuminâncias de Moro e a força-tarefa denunciadas pelo Intercept eram ‘coisa normal’. Esse Brasil… Se não existisse, teria que ser inventado.”