Desembargador responde ao STJ: tribunal ‘jamais se curvará a pressões’
O desembargador Guilherme Strenger, presidente da Seção de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, voltou a rebater, em termos duros, as críticas de ministros do Superior Tribunal de Justiça, que acusam o TJ-SP de afrontar a jurisprudência das cortes superiores ao agir com rigor excessivo em decisões na área criminal.
Em nota intitulada “Ainda há Juízes em São Paulo”, Strenger diz que o TJ-SP “jamais se curvará a pressões ou permitirá que membros de quaisquer Poderes da República venham atacar a independência funcional de seus magistrados”.
Foi uma resposta à notícia divulgada pelo STJ, afirmando que a Sexta Turma reconheceu “manifesta ilegalidade” na decisão do tribunal paulista, que manteve a condenação de um réu a um ano e oito meses de prisão devido ao tráfico de pequena quantidade de drogas.
Por unanimidade, a turma acompanhou o relator, ministro Sebastião Reis Júnior, e concedeu o habeas corpus para fixar o regime aberto de cumprimento de pena e determinar a substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, a serem escolhidas pelo juiz competente.
O relator afirmou que “a magistratura como um todo deve estar atenta à necessidade de pôr em prática a política criminal de intervenção mínima, direcionada à adoção da pena privativa de liberdade apenas a infrações que reclamem maior rigor punitivo”.
Strenger diz que os magistrados da Seção de Direito Criminal “não podem aceitar, de forma passiva, críticas agressivas e desmesuradas” proferidas por ministros do STJ, sobre o conteúdo de suas decisões. Segundo o desembargador, o STJ busca “impor conduta decisória padrão e conduzir os julgados das instâncias ordinárias”.
No final de julho, o desembargador emitiu nota contestando declarações do ministro Rogerio Schietti Cruz, que, durante seminário, acusou magistrados do TJ-SP de “simplesmente ignorarem, ou melhor, desconsiderarem” jurisprudência do STF e do STJ.
Schietti Cruz afirmou que a prisão provisória não pode ser usada como punição, e entendeu a insistência de alguns tribunais como “uma afirmação de poder”.
Naquela ocasião, Strenger negou desrespeito aos julgados dos tribunais superiores, ressaltando que, “em matéria criminal, onde são analisadas questões de fato relativas às circunstâncias da prática criminosa e às condições pessoais de seu autor, não há espaço para emprego de fórmulas genéricas, desconectadas da realidade do caso concreto”.
No julgamento desta terça-feira, o ministro Antonio Saldanha Palheiro disse que o STJ adere ao que vem do Supremo “com absoluta disciplina”. “O que vemos no Tribunal de São Paulo é uma reiteração permanente em descumprir, uma afronta às cortes superiores em nome do livre convencimento motivado, da persuasão racional, que são fundamentos num direito artesanal, não num direito de massa que nós vivenciamos”.
Strenger sustenta que “não obstante a existência de perigosas facções criminosas e do crime organizado instalado em seu território, São Paulo desponta como um dos Estados com os melhores índices de segurança do país, resultado que, em grande parte, deve-se a atuação firme e obstinada de seus magistrados, sobretudo na área criminal”.
O STJ julgou habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em benefício de Eduardo Ferreira Camargo. O juízo da 3ª comarca de Registro (SP) condenou o paciente pela prática do crime de tráfico de drogas privilegiado.
Na sentença, a juíza decidiu:
“O regime inicial será o fechado, único possível, ante o disposto na Lei n.11.464/07. O tráfico de drogas, seja aquele praticado pelo réu reincidente ou pelo primário, é crime hediondo. A hediondez do delito está relacionada à gravidade da conduta e ao mal que ela causa à sociedade, não aos antecedentes do acusado. O traficante deve ser, em um primeiro momento do cumprimento da pena, segregado do convívio social, porque demonstrou ser capaz de colocar a sociedade e a saúde dos cidadãos em sério risco”.
Impetrado habeas corpus na origem, o desembargador Salles Abreu indeferiu a liminar. O ministro Sebastião Reis Júnior entendeu que houve “constrangimento ilegal a ser reparado”, tendo deferido a liminar.
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Eis a íntegra da nota divulgada pelo TJ-SP:
“Ainda há Juízes em São Paulo”
Novamente, os magistrados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo são alvo de críticas injustas, em razão do conteúdo de suas decisões, dessa vez por parte de ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em sessão realizada aos 4 de agosto de 2020, o que desafia as seguintes considerações.
Como se sabe, em decorrência da garantia da independência funcional, no exercício da atividade jurisdicional, o magistrado não deve estar sujeito a qualquer tipo de ordem ou injunções institucionais, cabendo-lhe seguir apenas a sua consciência, formada a partir do que dispõem as Leis e a Constituição da República.
Esse predicado afigura-se de tal modo relevante e indispensável à existência do Estado Democrático de Direito, que a Constituição Federal, a fim de preservá-lo, prevê aos magistrados as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio (art. 95), além de classificar como crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra o livre exercício do Poder Judiciário (art. 85, II).
Ainda, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/1979) estabelece que o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir (art. 41).
Por óbvio, tal atributo não representa nenhum privilégio ao julgador, mas consubstancia, antes de tudo, uma garantia à própria sociedade, que necessita contar com magistrados independentes e livres de quaisquer pressões, para que possam decidir os conflitos de forma justa e prestar a jurisdição com desassombro, serenidade, ética, imparcialidade e imunes a retaliações de quem quer que seja.
Aliás, consoante previsto no Código de Ética da Magistratura Nacional, exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais (art. 4º).
Ainda, impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos (art. 5º), sendo dever do magistrado denunciar qualquer interferência que vise limitar sua independência (art. 6º).
No mesmo sentido, os Princípios de Bangalore de Conduta Judicial, elaborados pela Organização das Nações Unidas (ONU), trazem a independência do magistrado como valor primeiro a ser observado, nos seguintes termos:
Valor 1 – INDEPENDÊNCIA – Princípio: A independência judicial é um pré-requisito do estado de Direito e uma garantia fundamental de um julgamento justo. Um juiz, consequentemente, deverá apoiar e ser o exemplo da independência judicial tanto no seu aspecto individual quanto no aspecto institucional.
Por isso, os magistrados da Seção de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, a grande maioria com mais de 35 (trinta e cinco) anos de judicatura, não podem aceitar, de forma passiva, críticas agressivas e desmesuradas proferidas por ministros do Superior Tribunal de Justiça, sobre o conteúdo de suas decisões, que, aludindo à suposta desobediência à jurisprudência dos Tribunais Superiores e afirmando ser necessário “pôr em prática a política criminal de intervenção mínima”, buscam impor conduta decisória padrão e conduzir os julgados das instâncias ordinárias.
Noticiário desse jaez acaba por agredir não apenas o TJ-SP, mas todos os Tribunais de Justiça do país, porquanto pretende engessar a jurisdição e tolher a liberdade dos julgadores, em clara afronta à independência funcional, razão por que merece pronta e veemente resposta.
Ora, uma coisa é seguir entendimento jurisprudencial, louvável à segurança jurídica; outra, no entanto, é exigir a adoção de entendimento sumulado, quando este não se amoldar à hipótese, consoante justificativa constitucionalmente exigida, notadamente na área penal, frente ao caso concreto e à prova fática.
Ressalte-se, por oportuno, que além de guardar fiel obediência à Constituição Federal e às Leis vigentes, as decisões proferidas pelos mais de dois mil juízes que integram o Tribunal de Justiça de São Paulo, seguem estritamente o que dispõem as súmulas vinculantes e as teses fixadas em casos de repercussão geral e recursos repetitivos. No entanto, o que não se pode conceber é que se retire do magistrado sua liberdade de analisar as particularidades de cada caso concreto e de decidir conforme seu livre convencimento motivado.
Não se desconhece que o Tribunal de Justiça de São Paulo é a Corte com o maior volume processual do país. Aliás, conforme dados dos Relatórios “Justiça em Números”, do Conselho Nacional de Justiça, nos últimos seis anos, dos 91 Tribunais que compõem o Poder Judiciário Nacional, o TJ-SP é responsável, em média, por cerca de 20% de todos os casos novos por ano (processos por classe). Daí o grande volume de recursos oriundos da Corte bandeirante aos Tribunais Superiores, sem que isso represente, a toda evidência, desrespeito à jurisprudência consolidada.
De outro lado, importa considerar que, não obstante a existência de perigosas facções criminosas e do crime organizado instalado em seu território, São Paulo desponta como um dos Estados com os melhores índices de segurança do país, resultado que, em grande parte, deve-se a atuação firme e obstinada de seus magistrados, sobretudo na área criminal.
Por tais razões, o Tribunal de Justiça de São Paulo, instituição com cerca de 150 anos de história, jamais se curvará a pressões ou permitirá que membros de quaisquer Poderes da República venham atacar a independência funcional de seus magistrados, podendo-se afirmar, em analogia ao conhecido conto do Moleiro de Sans-Souci, imortalizado por François Andrieux, que, seguramente, ainda há Juízes em São Paulo.
GUILHERME GONÇALVES STRENGER
Presidente da Seção de Direito Criminal