Fardas entre togas nos tribunais

A decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins, de nomear o general Ajax Porto Pinheiro para a Secretaria-Geral do Tribunal da Cidadania retoma uma questão levantada neste espaço, em setembro de 2018, e até agora não respondida: o que faz um general numa corte superior?

Até o final de agosto, Pinheiro substituía o general reformado Fernando Azevedo, atual ministro da Defesa, como assessor de Dias Toffoli na presidência do Supremo Tribunal Federal.

Azevedo teria sido indicado para o gabinete de Toffoli pelo então comandante do Exército, general Villas Bôas.

Segundo informou a jornalista Andrea Sadi, do G1, o general Ajax Pinheiro também foi indicado para substituir Azevedo por Villas Bôas, a pedido de Toffoli.

A consulta de Toffoli pode ser vista como uma deferência, ou como subserviência do presidente da Corte Suprema.

Na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula, Villas Bôas escreveu em rede social que o Exército está ainda “atento às suas missões institucionais”.

Não detalhou o que pretendeu dizer com a expressão, como a Folha anotou.

Solitário, o decano do STF, ministro Celso de Mello, criticou as “intervenções pretorianas” do general –tidas como pressão do Exército sobre o Supremo.

Em artigo na Folha, o professor de Direito Oscar Vilhena Vieira, alertou: “Não devemos nos esquecer que a Constituição não conferiu às Forças Armadas a função de tutelar a cidadania brasileira ou o Supremo Tribunal Federal. Também é sempre bom lembrar que advertência vinda da caserna é ameaça”.

Dias antes, editorial da Folha, sob o título “Imprudências Fardadas”, advertia que “às Forças Armadas, bem como às demais organizações do Estado, cumpre acatar as decisões soberanas das cortes e das urnas”.

Questionado pelo jornal, naquela ocasião, sobre o simbolismo da presença de um militar no STF, Toffoli disse, via assessoria, que “a escolha obedeceu a critérios objetivos de habilidades e competências”.

Respondeu, mas não esclareceu.

O Blog também aguarda resposta do ministro Humberto Martins sobre os motivos do convite ao general Pinheiro, e o que o oficial fará no STJ.

Uma primeira leitura poderia supor que o militar aderiu à prática de muitos burocratas de Brasília –e de alguns magistrados, fora dos tribunais de origem–, que, nas mudanças de administração, conseguem se acomodar em outros órgãos.

A hipótese mais provável é a ocupação planejada, por oficiais graduados, de cargos na cúpula dos tribunais, como se fosse uma “missão militar”. E não apenas o aproveitamento da experiência desses assessores em questões administrativas, de planejamento ou de segurança.

Os generais Azevedo e Pinheiro são oriundos do mesmo grupo –ex-integrantes da missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti. Eles se reuniam antes da eleição do capitão Jair Bolsonaro em torno do general Augusto Heleno, talvez o mais próximo do Presidente. Heleno foi comandante militar da missão de paz da ONU no Haiti.

Também atuaram em missão da ONU no Haiti o atual comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, e o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-secretário de Governo.

Como revelou o jornalista Vinicius Sassine, na revista Época, o general Fernando Azevedo integrou “um grupo de suporte” à chapa do capitão reformado Jair Bolsonaro e do general da reserva Antônio Hamilton Mourão, respectivamente, então candidatos a presidente e vice-presidente da República pelo PRTB.

Segundo a reportagem, “o general participou de uma reunião que formulou propostas para a campanha e ofereceu um almoço, em sua casa, ao vice da chapa”.

Azevedo disse à revista que Mourão é seu amigo do Alto-Comando (do Exército). “Não participo diretamente da campanha. São sugestões para o Brasil. Foi um almoço com velhos camaradas. O voto é secreto… mas a candidatura de Bolsonaro é viável”, disse na ocasião o atual ministro da Defesa.

Também antes da eleição de Bolsonaro, a jornalista Maria Cristina Fernandes publicou artigo no jornal Valor Econômico, sob o título “Um general no gabinete da conciliação”.

Segundo ela, o general Azevedo “não é um quatro estrelas qualquer”. “Construiu uma carreira próxima aos poderes civis.” Ela lembrou que o oficial foi ajudante de ordens do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Ganhou intimidade com o Congresso ao atuar como assessor parlamentar do Exército.

Toffoli –ainda segundo a jornalista– teria ficado convencido de que “o presidente do Supremo precisaria de um assessor com formação sólida e conhecimento do país”.

O convite ao general Azevedo gerou críticas e elogios isolados.

O ex-ministro da Justiça José Carlos Dias considerou a escolha “uma má ideia” de Toffoli. “O Supremo jamais precisou de uma assessoria militar. A escolha fica mal para o STF, pois é absolutamente desnecessária”, afirmou Dias, em reportagem da Folha.

“Em uma democracia e em um estado de direito não cabe às organizações militares ou a seus integrantes –-salvo como cidadãos na sua liberdade de expressão-– tentar interferir na agenda política do país ou nas pautas do Poder Judiciário”, afirmou em nota, na ocasião, a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).

“Militares na política produzem anarquia”, afirmou Elio Gaspari, em título de artigo publicado na Folha. Eis o que o pesquisador dos governos militares disse a respeito da escolha de Toffoli:

“Houve um tempo em que se sabia o nome dos ministros da Educação e da Saúde. Depois, as pessoas tiveram que aprender a composição do Supremo Tribunal Federal e conheceram também a péssima opinião que alguns deles têm de seus colegas. Agora começa-se a aprender nome de generais. Há o Villas Bôas, o Mourão e o Augusto Heleno e o presidente do Supremo Tribunal levou um quatro-estrelas da reserva para sua assessoria. Mau sinal”.

O procurador-geral de Justiça do Pará, Gilberto Valente Martins, ex-conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, diz que Toffoli “foi muito habilidoso nessa escolha”.

“Os militares das Forças Armadas são altamente qualificados. Certamente, um militar que chega ao generalato é bem formado. Na área da segurança institucional –atividade de inteligência– são os melhores”.

Uma ex-conselheira do CNJ procurou desmistificar a ideia de que a formação militar é suficiente para gerir a máquina pública.

Eis sua opinião:

Está na moda chamar generais como se fossem especialistas em tudo. Isso tem a ver com uma necessidade de aparentar ordem, organizar a burocracia. Mas para atividades que exigem conteúdo específico, é preciso ouvir as demandas, conhecer os problemas e propor soluções perenes que se adaptem a várias realidades.

Para isso, a simples hierarquia não serve.