O peru, o presunto e a democracia

O jornalista Carlos Brickmann revela em sua coluna que o dono de uma lanchonete em Alagoas foi preso pela PM por batizar seus sanduíches com nome de patentes militares.

O comandante da PM entendeu que era uma ofensa à corporação.

O comerciante foi solto pelo delegado e insiste em manter o que considera uma estratégia de marketing: o sanduíche “coronel” é filé com presunto; o sanduíche “comandante”, calabresa frita. Os mais baratos são dedicados a escalões inferiores.

O comandante continua irritado.

O advogado do comerciante pediu habeas corpus preventivo, para evitar nova prisão de seu cliente, e prepara denúncia por abuso de autoridade contra o comandante da PM.

Eis, segundo Brickmann, um dos argumentos do advogado: “não há lei que impeça a casa de ter no cardápio lula à milanesa, ou filé a cavalo, ou coronel mal passado”.

Se o caso chegar ao Supremo, convém consultar o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay, que entende de prerrogativas e de culinária.

No início do julgamento do mensalão, talvez por acreditar que o caso terminasse em pizza, Kakay introduziu no cardápio de seus restaurantes o sanduíche “Presuntão da Inocência” (na Expand) e o “Supremo Corte” (no Piantella).

Supõe-se que os ministros do STF digeriram a provocação, e não tenha sido necessário pedir explicações para deixar o caso em pratos limpos.

O famoso publicitário cliente de Kakay foi condenado.

Em 2019, o advogado desprezou a liturgia da corte e circulou de bermuda nos corredores do Supremo, registrando o feito em foto posada que chegou à imprensa. Depois, em nota, pediu desculpas “aos membros do Poder Judiciário e a quem, de alguma forma, considerou o fato desrespeitoso”.

“Foi uma passagem rápida pelo tribunal, por motivo de extrema urgência e durante um feriado, apenas para buscar um documento importante para a defesa de um cliente”, disse.

Em 1968, no período das trevas, o jurista e advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto, que estava preso, ouviu de um carcereiro que o AI-5 marcava o início de uma “democracia à brasileira”.

“Existe peru à brasileira, mas não soluções à brasileira. A democracia é universal, sem adjetivos”, reagiu o defensor de presos políticos.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, no entanto, diz acreditar numa “democracia militar”.

Quem sabe, a tal democracia militar explique o fato de o Presidente e alguns generais terem ouvido –sem apartes– o então titular do Ministério da Educação dizer, em reunião, que os ministros do STF deveriam ser presos.

Talvez os adeptos dessa crença também entendam como democracia o fato de um juiz bolsonarista planejar conceder uma liminar, determinando que o Exército recolhesse urnas eletrônicas às vésperas da eleição, ter sido afastado do cargo em decisão unânime do CNJ e voltado à toga por ordem de um ministro do Supremo.

O juiz é amigo de um dos filhos do Presidente –aquele que sugeriu que, para fechar o Supremo, basta mandar um soldado e um cabo. O mesmo magistrado agora aspira, nas redes sociais, ocupar a vaga do decano Celso de Mello, que se aposenta em novembro.

Haja democracia.