Procurador pede que associação defenda promotor acusado por Gilmar no CNMP

O procurador de Justiça aposentado Airton Florentino de Barros, de São Paulo, enviou carta ao presidente da Associação Nacional do Ministério Público (Conamp), Manoel Victor Sereni Murrieta e Tavares, em que pede a habilitação da entidade em processo disciplinar no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) provocado por Gilmar Mendes contra o promotor de Justiça Daniel Balan Zappia, de Mato Grosso. (*)

O conselheiro Otavio Luiz Rodrigues Junior (na foto) foi relator do procedimento que deu origem ao Processo Administrativo Disciplinar no CNMP, cuja relatoria ficou com o conselheiro Luciano Nunes Maia. (**)

Segundo Barros, Zappia responde a “injusto, para não dizer absurdo”, processo administrativo disciplinar em razão de ter promovido ações judiciais para apurar e cessar danos ao meio ambiente em fazendas pertencentes a familiares do ministro Gilmar Mendes localizadas na Área de Preservação Permanente Nascentes do Rio Paraguai-MT.

Segundo a acusação, o promotor Daniel Balan Zappia teria:

– violado, em tese, a lei que rege a modalidade recursal ao apresentar documento que não constava do processo;

– praticado abuso processual, com o ajuizamento sucessivo de demandas contra o mesmo réu, dificultando o direito à ampla defesa e ao contraditório;

– conduzido diversos procedimentos administrativos para verificar supostas irregularidades na encampação de instituição de ensino superior privada por universidade estadual, que, ao final de longa investigação, concluiu-se pela ausência de participação do recorrente [Gilmar Mendes] e de seus familiares;

– requisitado dados bancários de pessoa jurídica, pedido indeferido pelo juízo competente.

No recurso oferecido ao CNMP –que gerou a instauração do processo administrativo disciplinar contra Daniel Balan Zappia– Gilmar Mendes foi representado pelos advogados Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch, Guilherme Pupe da Nóbrega e Victor Hugo Gebhard de Aguiar.

Na peça, alega-se que o promotor realizou “verdadeira cruzada contra o Recorrente [Gilmar Mendes] e seus familiares”.

“Agindo unicamente com base em seu evidente desejo de lograr alguma condenação contra o Recorrente [o ministro do STF] ou seus familiares, [o promotor] tem feito diversas investidas jurídicas despidas de qualquer fundamento ou razoabilidade”, sustentam os advogados.

Airton Florentino de Barros pede que a associação apresente memorial aos conselheiros do CNMP no sentido de que os fatos apontados no processo não configuram infração disciplinar.

O procurador aposentado entende que se trata do legítimo exercício das funções do Promotor de Justiça, “nada justificando sua responsabilização disciplinar, sob pena de perigosa quebra do tão sagrado como indispensável princípio da independência funcional do Ministério Público”.

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Eis a íntegra da correspondência:

São Paulo, 23 de setembro de 2020.

Excelentíssimo Senhor

Doutor MANOEL VICTOR SERENI MURRIETA E TAVARES

Digníssimo Presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP.

  1. Em 3 de junho de 2020, por meio da PORTARIACNMP/CONS/GAB/LM Nº 02/2020, o Colendo Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP, provocado por recurso interno do eminente Ministro GILMAR MENDES, do STF, em seu próprio nome e no interesse patrimonial de familiares, instaurou processo administrativo disciplinar (PAD nº 1.00342/2020-08) contra o ilustre Promotor de Justiça DANIEL BALAN ZAPPIA, integrante do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, sob o pretexto de que restaram “…possivelmente configuradas as condutas previstas nos artigos 190, inciso VII, e 134, incisos III, VI e VII, da Lei Complementar Estadual do Mato Grosso nº 416, de 22 de dezembro de 2010, para as quais os arts. 191 e 193 da mencionada Lei Complementar Estadual preveem pena de advertência a suspensão”, conforme a referida portaria.
  1. Esse ato narrou a conduta do ilustre Promotor de Justiça nos seguintes termos:

Fato 1O promotor de Justiça Daniel Balan Zappia ao ajuizar o Agravo de Instrumento nº 1004795-25.2018.8.11.0000, em 18/8/2017, em face de decisão que lhe foi desfavorável, apresentou documentos produzidos em 19/5/2016, 31/5/2016 e 1º/6/2016, já existentes antes mesmo de ajuizar o processo 10001027-13.2017.8.11.0005, fato ocorrido em 18/8/2017.

O comportamento do promotor de Justiça violou, em tese, a lei que rege a modalidade recursal ao apresentar documento que não constava do processo onde foi proferida a decisão impugnada. Ao juntar documento que não estava no processo e mais, que a ele era anterior, o promotor de Justiça pratica comportamento caracterizável, em tese, como antiético e proibido no processo. Tal atestaria a falta de zelo pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções;

Fato 2 – O promotor de Justiça Daniel Balan Zappia teria ajuizado um total de 23 Ações Civis Públicas, sendo 6 delas contra o recorrente e seus familiares. A alegação do membro processado de que teria ajuizado uma ação para cada propriedade sediada na Área de Proteção Ambiental (APA) Nascentes do Rio Paraguai não parece ser procedente, uma vez que uma mesma propriedade do recorrente e de seus familiares foi objeto de 2 das 23 ações ajuizadas pelo membro processado.

O abuso processual, portanto, pode-se configurar com o ajuizamento sucessivo de demandas contra o mesmo réu, dificultando o direito à ampla defesa e ao contraditório da parte adversária. Tal conduta, quando praticada por um membro do Ministério Público, é capaz de colocar em xeque sua imparcialidade e impessoalidade em relação à parte contrária, bem como demonstra aparente falta de zelo pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções.

Fato 3 – O promotor de Justiça Daniel Balan Zappia conduziu diversos procedimentos administrativos destinados à verificação de supostas irregularidades na encampação, em 2013, de instituição de ensino superior privada por universidade estadual. Ao final de longa investigação, concluiu-se pela ausência de participação do recorrente e de seus familiares e pelo ajuizamento de ação civil pública em face de outras pessoas.

Nos autos de procedimento específico, o recorrido requisitou dados bancários de pessoa jurídica. Tal pedido foi indeferido pelo juízo competente. Em decisão de 27/5/2019, o juízo competente deferiu o pedido dos investigados (ora recorrente e familiares deste) em inquérito civil para a suspensão ou o trancamento do mencionado inquérito civil promovido pelo Ministério Público, entendendo que a investigação aparentava revelar caráter de ilegalidade, devendo ser suspenso inquérito civil.

  1. Quanto ao Fato 1, se é verdade, em princípio, que ao autor incumbe juntar com sua inicial e ao réu com a contestação os documentos comprobatórios de suas respectivas alegações (CPC, art.434), nada impede que as alegações e documentos trazidos com a contestação sejam contrapostos com a juntada na réplica de novos documentos (CPC, art.351) e, assim por diante, a qualquer tempo, novos documentos podem ser juntados quando destinados a provar fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos produzidos nos autos (CPC, art.435); inclusive em sede recursal (CPC, art. 318).

Entende-se por documento novo o produzido posteriormente ou aquele de que se tomou conhecimento posteriormente ao ajuizamento. Também no agravo de instrumento, pode o recorrente juntar documentos que reputar úteis para a melhor compreensão da controvérsia (CPC, art.1017, III e §5º). Ademais, se é certo que, nas questões envolvendo direito patrimonial disponível, resolveu o legislador processual civil admitir para a solução da lide a constatação da verdade formal, nas questões relativas a interesses indisponíveis, preferiu exigir, na medida do possível, a busca da verdade real.

Ora, na hipótese, cuidando-se de ação civil pública para a proteção do meio ambiente que, por ser bem de uso comum do povo (CF, art.225), é inalienável (Cód.Civil, art.100) e, portanto, indisponível, não tem o Promotor de Justiça disponibilidade desse interesse, não lhe sendo lícito renunciá-lo e, por raciocínio lógico, também não lhe cabe renunciar a prova de sua existência (CPC, art.345, II, 373, §3º, I).

Assim, se não juntasse o Promotor de Justiça os documentos que juntou, na oportunidade que o fez, deixaria de cumprir uma de suas funções institucionais (Lei 8.625/93, art.43, VI; LOMP-MT, art.134, VI). De qualquer modo, cuida-se de atividade-fim do Ministério Público, fundada na opinião de seu agente, esta amparada pela indispensável independência funcional, sem a qual, aliás, não haveria quem na Instituição se encorajasse a adotar qualquer das graves medidas de sua incumbência legal.

Não é por outra razão que o próprio CNMP reconheceu nem a ele caber revisar deliberações de atividade-fim do Ministério Público (Enunciado nº6 e Súmula nº8). O STF, a propósito, já reconheceu que …o princípio da independência funcional está diretamente atrelado à atividade finalística desenvolvida pelos membros do Ministério Público, gravitando em torno das garantias (a) de uma atuação livre no plano técnico-jurídico, isto é, sem qualquer subordinação a eventuais recomendações exaradas pelos órgãos superiores da instituição; e (b) de não poder ser responsabilizado pelos atos praticados no estrito exercício de suas funções… (STF, 1ª Turma, HC 137.637-DF, julg.6.3.2018, v.u, relator Min. LUIZ FUX, public. DJe 25.4.2018).

  1. Quanto ao Fato 2, chega ao absurdo alegar-se abuso processual do Promotor de Justiça por ajuizar 23 demandas, das quais seis contra familiares do eminente Ministro recorrente, tendo duas delas como objeto uma única de suas propriedades rurais. Dessa única premissa não se extrai a conclusão, ou seja, a suposição da ocorrência de abuso ou perseguição do ilustre agente do Ministério Público. Aliás, o fato de ter o ilustre Promotor de Justiça ajuizado muitas outras ações contra outras pessoas já contradiz a alegação de perseguição a familiares do eminente Ministro recorrente.

De outra parte, o fato de ter o ilustre Promotor de Justiça ajuizado seis ações civis públicas contra familiares do eminente Ministro recorrente, por si, não aponta para abuso ou perseguição, tanto mais porque se é uma para cada propriedade rural, certamente seria para bem definir a causa de pedir e o pedido de cada uma das ações, visto que as circunstâncias de uma propriedade rural, em geral, são distintas das de outras, ainda que contíguas ou de características semelhantes.

Aliás, essa mesma justificativa vale para tornar legítima a propositura de duas ações de proteção ambiental relativa à mesma propriedade rural (causas e pedir e pedidos distintos). Agrava-se a tentativa de impedir a livre atividade do ilustre Promotor de Justiça do Meio Ambiente no momento crítico de mudança climática vivida pelo Planeta, especialmente considerando o sofrimento concreto das populações da Amazônia, do Cerrado e do Pantanal com a exploração agrícola não tributária da sustentabilidade ambiental. Como resultado, há desmatamento, o uso excessivo de agrotóxicos e, por fim, a destruição da flora e da fauna, inclusive em áreas especialmente protegidas.

  1. Da mesma forma, o Fato 3, ou seja, a instauração de procedimento investigatório envolvendo mais pessoas do que as, ao final, demandadas, ao mesmo tempo que exclui a alegada perseguição, demonstra zelo e cuidado do ilustre Promotor de Justiça. Mesmo porque a investigação de Ministro do Supremo Tribunal Federal, em âmbito civil, demandaria delegação do Procurador Geral de Justiça, consoante dispõe o art. 29, VIII, da Lei nº 8.625/1993.

Dessa forma, a instauração de um novo procedimento investigatório para investigar o eminente Ministro GILMAR MENDES provavelmente se relacionou à delegação do chefe do Ministério Público do Estado de Mato Grosso.

De outro lado, da suspensão de procedimento investigatório, do indeferimento de medidas judiciais ou da extinção de ações civis públicas não decorre automaticamente a caracterização de infração disciplinar do integrante do Ministério Público. Aponte um Promotor de Justiça no país que só tenha sido vencedor em todas as medidas que promoveu. Evidentemente que, naquelas em que se viu vencido, não se pode, só por isso, concluir que teria agido necessariamente de forma temerária ou abusiva.

  1. Quem pertence aos quadros do MP ou por eles já passou sabe muito bem como se dá a grande maioria das representações à sua Corregedoria. Ou é o acusado descontente com a denúncia ou é a vítima revoltada com o arquivamento do inquérito. Quando não é uma “carteirada” de autoridades de todos os escalões. Não há saída. Sempre haverá um pretenso prejudicado por cada um dos atos da Instituição. Por isso, tais representações em geral não surpreendem.

Aqui, contudo, trata-se de reclamação formulada por um eminente Ministro da Suprema Corte Constitucional brasileira. Era de se esperar, data vênia, maior prudência.

Evidente que se houvesse comprovada perseguição, restaria caracterizado o alegado abuso. O reclamante, contudo, embora sendo seu o ônus da prova, não apontou um fato sequer que pudesse por conclusão lógica demonstrar dita perseguição a ele ou a seus familiares pelo ilustre Promotor de Justiça que, em todos os casos narrados na portaria inaugural, agiu por dever de ofício e nos limites de suas atribuições institucionais, sendo por isso absolutamente descabido ou no mínimo injusto insinuar ter o ilustre Promotor de Justiça agido da forma que agiu apenas e tão somente com o intuito de auferir promoção pessoal.

Ora, nas três hipóteses descritas não há o mais mínimo indício de qualquer infração disciplinar do representante do MPEMT. Na verdade, o ilustre Promotor de Justiça agiu com zelo e coragem, de modo a observar os princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, assumindo comportamento digno de elogios e honrando, sem dúvida, os desígnios institucionais. Cumpriu com louvor os preceitos do “Decálogo do Promotor de Justiça” ditado há 80 anos por Cesar Salgado.

  1. A propósito, a conduta adotada pelo ilustre Promotor de Justiça para a apuração de possíveis ilicitudes praticadas por titulares de propriedades rurais na Área de Proteção Ambiental (APA) Nascentes do Rio Paraguai no Estado do Mato Grosso, inclusive pelo uso ilegal, quando não excessivo, de agrotóxicos, torna-se muito mais elogiável, por relevante e necessária para a defesa do interesse público, sobretudo diante do clamor popular e, bem assim, da veemente manifestação da comunidade científica indicando os graves e frequentes danos ambientais como causa da crise climática que avança para todos os cantos do País e do Planeta, com o risco de comprometer a vida e o bem estar de futuras gerações.
  1. Ademais, não se pode tratar o princípio da independência funcional do Ministério Público sem a necessária reverência, visto que, embora acompanhando secularmente o exercício das funções institucionais por força da tradicional coragem de seus membros, importante rememorar a imensa e dolorosa luta para a conquista de sua formal inclusão na Lei Complementar 40/81 e, depois, para erigi-lo à condição de garantia constitucional (CF, art.127, §1º).

Muito menos se pode admitir que essa prerrogativa institucional, alcançada a duras penas como instrumento da democratização do Ministério Público seja de qualquer modo comprometida ou até destruída por ato do próprio Colendo CNMP, muito menos em razão de indevidas e suspeitas ingerências pessoais de interessados, por mais graduados que sejam no poder político ou econômico nacional ou estrangeiro.

  1. Em razão disso, com a extrema e sincera preocupação de quem participou por longas décadas das batalhas institucionais que levaram à conquista da independência funcional do Ministério Público, embora hoje aposentado, peço-lhe, como associado, por meio da presente carta, que, em nome da Associação Nacional do Ministério Público CONAMP, Vossa Excelência, até para cumprir o disposto no artigo 2º, I, III e VI, do Estatuto dessa Associação Nacional, postule sua habilitação, na condição de interessada, no referido Processo Disciplinar nº 1.00342/2020-08, bem como apresente a todos e a cada um dos eminentes Conselheiros do CNMP memorial com solene manifestação no sentido de que os fatos apontados no referido processo administrativo, como transcritos, não configuram infração disciplinar, senão o legítimo exercício das funções do Promotor de Justiça, em sua atividade-fim, nada justificando sua responsabilização disciplinar, sob pena de perigosa quebra do tão sagrado como indispensável princípio da independência funcional do Ministério Público.

Apresento-lhe, na oportunidade, meus protestos de consideração.​

Airton Florentino de Barros

Procurador de Justiça Aposentado de São Paulo

(*) Processo Disciplinar nº 1.00342/2020-08

(**) N.R. – Com correção de informações em 30/9.