Porta aberta para a impunidade
O comentário a seguir é de Luiz Antonio Guimarães Marrey, ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo. Trata de notícia publicada pelo Supremo Tribunal Federal sob o título “Primeira Turma mantém decisão de Júri que absolveu réu contra prova dos autos”. (*)
Segundo informa o STF, “a mudança de entendimento se deve à alteração na composição do colegiado, em razão da saída do ministro Luiz Fux para a Presidência da Corte e do ingresso do ministro Dias Toffoli na Primeira Turma”.
A opinião de Marrey foi publicada em sua página no Facebook.
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Tomei conhecimento que na data de hoje a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal alterou entendimento em vigor há décadas e decidiu que a absolvição de um autor de tentativa de feminicídio pelo Tribunal do Júri e que foi absolvido contra a prova dos autos, não poderia ser submetido a novo julgamento.
A decisão foi tomada por três votos a dois e nega vigência ao art. 593, III, d, do Código de Processo Penal, que determina que quando a decisão do Tribunal do Júri for absurda, o julgamento deve ser anulado e deve haver novo julgamento.
Até hoje sempre se decidiu que a soberania dos veredictos do tribunal popular não é absoluta e poderia ser objeto de exame pelo Tribunal do Justiça, para verificar sua regularidade e sua compatibilidade com a prova dos autos.
Quando há mais de uma linha probatória viável, normalmente é confirmada a decisão do Júri para prestigiar a soberania da decisão dos jurados. No entanto, quando a decisão é arbitrária, favorecendo a defesa ou a acusação, o julgamento é anulado.
No caso concreto, houve uma tentativa de feminicídio e consta que o réu é confesso.
O Tribunal de Justiça decidiu anular o julgamento em face da decisão absolutória ser absurda. O mesmo entendimento teve o Superior Tribunal do Justiça e agora veio essa novidade na decisão do Supremo.
Com todo o respeito, essa nova orientação vai ser fonte de impunidade de um lado e de injustiça.
Em alguns julgamentos fatores diversos influem para que os jurados ignorem a prova dos autos. Pode haver medo, preconceito, opção ideológica, facciosismo.
O país é muito diverso e as condições de funcionamento do Tribunal do Júri também o são. Assim o controle judicial feito nos termos da lei processual sempre foi uma garantia para se tentar evitar decisões injustas.
Realmente espero que tal orientação não prevaleça no plenário do tribunal. Os danos à sociedade seriam enormes e o risco de injustiça em favor ou contra o acusado também. Se levarmos este raciocínio ao extremo também não caberia revisão, que somente o sentenciado pode ajuizar.
Lamento muito tal nova orientação. Creio que os senhores ministros, especialmente quem nunca tinha votado tal tema, reflitam e vejam que tal novidade é contrária à ideia de justiça e pode ser fonte de impunidade dos violentos.
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(*) Eis a notícia publicada pelo STF:
1ª Turma mantém decisão de Júri que absolveu réu contra prova dos autos
Em decisão majoritária, Turma muda entendimento e nega a realização de nova deliberação do Tribunal do Júri.
Na sessão desta terça-feira (29), a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não é possível ao Ministério Público recorrer de decisão do Tribunal do Júri que absolveu réu com base em quesito absolutório genérico. A decisão fundamentou-se na soberania dos vereditos, assegurada na Constituição Federal.
A mudança de entendimento se deve à alteração na composição do colegiado, em razão da saída do ministro Luiz Fux para a Presidência da Corte e do ingresso do ministro Dias Toffoli na Primeira Turma.
A Turma cassou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) que havia determinado ao Tribunal do Júri a realização de novo julgamento de V.R.M., acusado de tentar matar a esposa, quando ela saía de um culto religioso, com golpes de faca, por imaginar ter sido traído.
Por maioria dos votos, o colegiado aplicou seu novo entendimento sobre o princípio da soberania dos vereditos e concedeu pedido da Defensoria Pública estadual (DPE-MG) formulado no Habeas Corpus (HC) 178777.
O acusado, que confessou o crime, foi absolvido pelo Tribunal do Júri. No entanto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) reformou a decisão por entender que ela era contrária ao conjunto probatório e determinou a realização de novo júri. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão.
Impossibilidade de recurso
Na sessão, o defensor público Flavio Aurélio Wandeck Filho sustentou a impossibilidade de recurso do Ministério Público contra decisão fundada em quesito absolutório genérico. De acordo com ele, o jurado decide por convicção íntima e não é possível saber as razões de decidir de cada integrante do Júri, que, por proibição do Código de Processo Penal (CPP), não pode debater com os demais os motivos da absolvição.
Soberania dos vereditos
O relator do HC, ministro Marco Aurélio, votou pelo deferimento do pedido da Defensoria Pública mineira. Segundo ele, a Constituição Federal (artigo 5º, XXXVIII, alínea “c”) assegura a soberania dos vereditos. Ele lembrou que o julgamento pelo tribunal do júri é feito por iguais, por leigos, e que o CPP prevê que o conselho de sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido. “Se os jurados absolvem, não há por que prosseguir nessa quesitação”, entendeu.
Para o ministro Marco Aurélio, a decisão do Júri não merecia censura, pois fora calcada na soberania dos vereditos, e o TJ não poderia desconsiderá-la ou assentar que só serviria a resposta negativa. Segundo o relator, a resposta positiva quanto à absolvição do acusado não fica condicionada à defesa ou aos elementos probatórios.
Os ministros Dias Toffoli e Rosa Weber acompanharam o relator, salientando que a Constituição Federal prevê a soberania do Júri tanto para condenação quanto para absolvição.
Legítima defesa da honra
Ficaram vencidos os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, que votaram pelo indeferimento do pedido com base em precedentes da Turma (RHC 170559). Os ministros entenderam que o caso diz respeito a um crime gravíssimo contra a mulher, em que o acusado considerou que a esposa lhe pertencia e que a morte dela lavaria a sua honra.
“Até décadas atrás no Brasil, a legítima defesa da honra era o argumento que mais absolvia os homens violentos que mataram suas namoradas e esposas, o que fez o país campeão de feminicídio”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes.
Para ele, embora a soberania dos vereditos seja uma garantia constitucional do Tribunal do Júri, há a possibilidade de um segundo julgamento pelo conselho de sentença, “aí sim, definitivo”, onde se esgotaria a análise probatória.
O ministro salientou que o quesito genérico tem a finalidade de simplificar a votação dos jurados, reunindo as teses da defesa, e não para transformar o corpo de jurados “em um poder incontrastável, ilimitado, que não permita que outro conselho de sentença possa reanalisar”.
Por sua vez, o ministro Luís Roberto Barroso, ao acompanhar a divergência na sua integralidade, afirmou que deve haver uma prevenção geral, a fim de não naturalizar o feminicídio.