Partidos políticos e apropriação privada de dinheiro público

Sob o título “O Partido sou eu“, o artigo a seguir é de autoria de Carlos Fernando dos Santos Lima, advogado especialista em compliance e procurador da República aposentado.

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L’Étatc’est moi, ou, em bom português, o Estado sou eu. A frase do rei francês Luís XIV poderia ser bem aplicada ao agir de Jair Bolsonaro enquanto presidente, mas não é sobre esse presunçoso político que quero falar. Gostaria de discutir sim sobre os diversos reizinhos dos partidos políticos brasileiros e de como esses feudos precisam ser democratizados. Não é possível mais que tenhamos tantos caciques – versão tupiniquim da monarquia – dizendo Le parti c’est moi (até procurei como os indígenas brasileiros poderiam dizer a mesma coisa, mas parece que eles, para a própria felicidade, não tinham partidos políticos).

O momento para essa discussão não poderia ser mais propício. Às vésperas das eleições municipais vemos ainda partidos relutando, por exemplo, em destinar verbas para candidatos negros e mulheres. Esse é um tema bastante sensível e importante, pois os reizinhos partidários têm insistido em compor as cotas raciais e de gênero com falsos candidatos, ou seja, pessoas colocadas nessa condição apenas para cumprir formalmente a regra, mas se recusam a repassar valores dos fundos partidários para esses grupos. E não cumprem a regra exatamente por não serem essas candidaturas realmente verdadeiras.

Trata-se portanto de um círculo vicioso. Por isso foram importantes as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nesses últimos anos reforçando a necessidade de serem realmente cumpridas essas cotas, inclusive no aspecto financeiro. Quando os partidos colocarem efetivamente dinheiro em candidaturas de negros e de mulheres, eles passarão a incentivar a participação desses grupos, deixando assim de serem clubinhos de homens brancos, velhos e ricos.

Essa medida já, por si só, representa uma oxigenação democrática nos partidos, mas ainda há muito a ser feito. Não se pode admitir que as legendas políticas sejam públicas quando recebem valores dos fundos partidários, dinheiro dos impostos pagos pelos brasileiros, e se fechem à fiscalização e transparência do uso desses recursos alegando que partidos são entes privados. Quem almeja chegar ao poder e dirigir o destino dos brasileiros deve ser transparente.

E transparência é a regra número um de compliance. Muito tenho respondido em seminários e aulas sobre o compliance partidário. Brinco sempre que os partidos políticos brasileiros falhariam na primeira exigência para um programa de conformidade efetivo: o tone at the top, ou seja, o compromisso da sua administração com a transparência e legalidade, enfim, com um padrão ético na persecução dos seus objetivos. O sistema político partidário brasileiro, infelizmente, está apodrecido na sua cabeça.

Além disso, até a semana passada havia 33 partidos políticos registrados no TSE. Esse número por si só evidencia a deturpação do objetivo dessas agremiações. Elas deveriam representar ideologias, propostas de governo e de progresso, mas se tornaram apenas veículos de interesses pessoais e máquinas de apropriação privada de dinheiro público.

A mãe de todas as reformas no Brasil, portanto, é política. É preciso falar disso apesar do desinteresse dos atuais congressistas, beneficiados justamente pela distribuição desproporcional do fundo partidário. Não há motivo político/ideológico para termos mais que seis partidos políticos. Precisamos deles como instituições capazes de filtrar lideranças e projetos de políticas públicas. Mas eles não podem ter dono, mas sim representantes dessas propostas, pois ideias ainda são mais importantes que pessoas.