‘Nada é de graça, muito menos o horário eleitoral gratuito e os fundos eleitorais’
Sob o título “Pelos poderes do nonsense”, o artigo a seguir é de autoria de Gustavo Sauaia Romero Fernandes, juiz de direito de São Paulo.
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Na noite de quinta-feira, em debate para a prefeitura de uma capital brasileira, um determinado candidato encerrou sua participação cantando parte de sucesso infantil dos anos 1980, dedicado a um herói de desenho animado. Ao contrário da história performance de Andy Kaufmann com o tema do Supermouse (Mighty Mouse em inglês), não pareceu ter havido risadas.
Como testemunha dos malabarismos da Justiça Eleitoral (em especial servidores e colaboradores) para que as eleições funcionem em plena pandemia, não tenho como não deixar de pensar: tanto trabalho para isso?
Tenho ciência de restrições (acertadas) a comentários de magistrados sobre política. Faço questão, portanto, de desconhecer dados sobre o aludido candidato. Nem seu partido, nem suas propostas.
Destaco que um dos encantos da democracia, o pior dos sistemas com exceção de todos os outros, é a chance de qualquer pessoa com ficha limpa ser candidata a qualquer cargo. A presença de candidatos jocosos é, não raro, um elemento irônico com o objetivo de expressar coisas importantes por meio do ridículo.
Resta saber, seja de sóbrios ou ridículos, até que ponto se deve repassar ao eleitor o financiamento desta liberdade. Nada é de graça, muito menos o horário eleitoral gratuito e os fundos eleitorais.
Todos os pagadores de impostos estão custeando o sujeito que, dentro de sua plena liberdade de expressão política (obtida até com sangue de outros), brinca de carrinho, aviãozinho, trenzinho, etc… na televisão.
Não nego que, por vezes, seja engraçado. Quando criança e adolescente, acompanhava os horários de uma hora como entretenimento. Porém, como adultos, nós nos demos conta de que não pagávamos para realizarem os outros programas humorísticos. Não consta, exemplificando, que meus pais patrocinavam o Viva o Gordo (ainda é permitido escrever “gordo”?).
Mas, desde a redemocratização, os tributos foram a fonte primordial para que o Estado garantisse dois shows por dia. Algo que, na TV aberta brasileira, só se compara ao tempo em que o Sistema Brasileiro de Televisão passava duas sessões de programas do Chaves. Ainda assim, era produzido no México.
Os horários eleitorais encolheram, mas nem por isso o eleitor deixou de ser o produtor não-remunerado do espetáculo eleitoral.
Temos mais de trinta partidos políticos no país. Tenho dúvidas se, nos milênios da História humana, chegamos a ter mais de trinta ideologias.
A despeito de restrições recentes, a maioria destes partidos ainda tem acesso aos fundos partidários. Mais: tem direito de ver seus candidatos em debates, sob pena de atentado ao equilíbrio da campanha. Algo que não ocorre nos Estados Unidos, por exemplo.
O resultado desta igualdade ao extremo é que o eleitor-produtor vê tudo, menos debate.
Correndo o risco de se deparar com dotes vocais bem distantes do que tinham, no contexto do gênero, os não-candidatos Luciano, Patricia e Juninho Bill. Enquanto o eleitor encarna o refrão “e a gente ainda paga por isso”, o aparato humano e tecnológico da Justiça Eleitoral faz das tripas coração para ser invencível perante as tarefas. Estas não terminarão às 17h de domingo.
Os candidatos derrotados irão para casa pensando no que farão no próximo pleito. Os servidores seguirão colocando tudo em ordem até a diplomação, sabendo que em dois anos tem mais. Torcendo para que não coloquem um plebiscito ou referendo no meio. Ou que não tenham que fazer outra eleição caso a primeira seja anulada.
Tudo sem poderem, ao menos, encerrar os trabalhos entoando o tema dos Thundercats.
Num país que há décadas convive com instabilidades, onde não há dinheiro sobrando em área alguma (nem no Judiciário), seria saudável repensar em qual medida o eleitor deve ser obrigado a participar da democracia.
Um sistema democrático tem que envolver o direito de não participar. Nem votando, nem pagando. Um bom tema para se colocar em debate. Nem que seja como respeito com quem paga, bem como com quem monta – e desmonta – o palco.