Uma crítica à ‘indústria dos pareceres’
“Sejamos diretos e sinceros: um litigante comum, não necessariamente pobre ou miserável, consegue defender-se em processo no qual a parte contrária contrata, não um, mas vários pareceres dos mais conhecidos doutrinadores do país?”
A questão instigante é levantada pelo ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça. Convidado a apresentar o livro “Constituição e Código Tributário Comentados” (*), ele aproveitou o prefácio para estimular o debate sobre o papel, no Brasil, do parecer jurídico contencioso. Ou, como diz, a “opinião casuística remunerada”.
Diz o prefaciador:
“Tirante raríssimos casos de atuação pro bono, parecer custa dinheiro, sem dúvida muito dinheiro, por conseguinte enseja privilégio a poucos, pouquíssimos. Tal já basta para excluir dos seus domínios e eventuais benefícios a esmagadora maioria dos brasileiros, situação agravada quando vulneráveis contendem com pessoas jurídicas, as grandes corporações, envolvidas com litígios em massa e, por isso, capazes de otimizar e diluir custos financeiros dos muitos pareceres jurídicos que eventualmente contratem, por si ou por meio de suas federações ou confederações”.
“No mundo todo, a doutrina é filha das salas de aula, das revistas jurídicas, dos manuais, de dissertações de mestrado e de teses de doutorado; em síntese, do pensar e escrever sobre as bases e sob restrições do método científico. No Brasil, cada vez mais a doutrina reproduz pareceres, colagem sem mínima anotação de que se está diante de aproveitamento de peça processual argumentativa em favor de uma das partes no processo”, afirma o ministro.
É o abuso do parecer, um fenômeno tipicamente brasileiro que gera o “faroeste do discurso jurídico”, como define Benjamin.
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Os trechos a seguir foram selecionados pelo Blog.
A Suprema Corte do Reino Unido (antes, House of Lords) até recentemente não admitia citação de jurista vivo. (…) No Brasil, tal regra evitaria o constrangimento (ou humilhação mesmo) de juízes e desembargadores que, ao citarem, em suporte da ratio decidendi, trecho inequívoco de doutrina, fossem desditos pelo próprio autor, em parecer contratado para ser apresentado ao STJ ou ao STF, sob o argumento de “má compreensão” ou de “citação descuidada” na referência judicial em questão.
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Certa vez me narrou o professor Damásio Evangelista de Jesus, meu querido e saudoso amigo, que, por erro de datilografia, um “não” foi acrescentado ou retirado de comentário a dispositivo legal de um dos seus Códigos anotados, de consulta quase obrigatória pelos juízes. Para sua surpresa, embora a frase remanescente em causa não fizesse nenhum sentido, entre aquela edição e a seguinte formou-se nova corrente jurisprudencial.
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Entre nós, desde o Século XIX, formou-se, em boa medida a partir da sala de aula, doutrina sólida e festejada nas mais diversas áreas do Direito, não sendo diferente com o Direito Tributário. É a chamada doutrina dos grandes juristas, expoentes da teoria e da produção científica, que são reconhecidos como juristas, não por si mesmos, mas pelos seus pares e pelos profissionais da disciplina. Na esteira do respeito assegurado a esses juristas e teóricos magistrais, cresceu enormemente nos últimos anos uma subcategoria de “atividade doutrinária” (entre aspas, porque, em seguida, melhor se explicará que de doutrina verdadeira não se trata) a cargo de grandes e pequenos especialistas – alguns deles dedicados quase que exclusivamente a oferecer opinião casuística remunerada.
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Nessa zona cinzenta entre teoria e prática, há aqueles que se arvoram, de fato e contra legem, por meio de seus pareceres sobre litígios concretos em andamento, poderes maiores do que os do legislador. Ilegitimamente, por apropriação indevida da soberania popular, expectativa consciente ou inconsciente de assumir posição de fonte do Direito. E fonte de Direito acima da lei e da própria Constituição, com o único objetivo imediato de convencer, não o público em geral acerca de uma dada tese ou opinião, mas o juiz do processo a decidir em favor da parte contratante do parecer.
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Não se tomem as observações críticas aqui feitas por juízo negativo genérico contra o parecer em si, nem por desmerecimento da sua utilidade prática, utilidade vinculada, não esqueçamos, aos autos de um litígio com nome e sobrenome. O que se haverá de censurar, isso sim, vem a ser que não se controvertam, a um, as premissas e as implicações ético-políticas e normativas do parecer e, a dois, em estágio posterior, a contaminação da literatura doutrinária por “conhecimento parcial”, derivado da indústria do parecer.
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Em divergência inaceitável com a práxis de outras disciplinas científicas, frequentemente o que se vê é mera cópia ipsis litteris, com ínfima alteração do estilo de redação para adaptar o texto do parecer ao formato de teoria abstrata, sem uma palavra de advertência. Claro, esse último problema se resolve em grande medida quando o parecer vem publicado como tal (o que não é incomum) ou, no caso de emprego total ou parcial em livro doutrinário, por meio de alerta inequívoco acerca da origem das considerações ali empreendidas.
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Em direto confronto com a atividade dos órgãos constituídos para legislar sob o imperium do Estado de Direito, ou em substituição a ela, o abuso do parecer, fenômeno tipicamente brasileiro, traz à memória o período dos glosadores e pós-glosadores, além deum certo “direito dos juristas”, defendido, sem sucesso, no Século XIX, pela Escola Histórica do Direito e por pandectistas.
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Lembra figuras variadas do passado, do tipo ius publice respondendi, porta-vozes oficiais do Direito escolhidos pelo Imperador romano, cujas opiniões vinculavam os magistrados; ou o instituto alemão de Aktenversendung, em que se admitia que juízes, muitos deles sem treinamento jurídico, enviassem processos a Faculdades de Direito para elaboração de decisão, criticado e abolido precisamente por encarnar usurpação de poder judicial.
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A diferença é que, na situação brasileira, em vez de ato imperial ou benção do legislador, o que se dá é autonomeação, advinda da expectativa de autoridade do parecer, não de título ou documento do governante (soberania popular) ou da academia (soberania acadêmica), mas de autoproclamação e, em alguns casos, de autopromoção mesmo. Em verdade, transformamo-nos em território livre de pareceres contenciosos sob roupagem de peça doutrinária.
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O mais inquietante, pela ótica do enfraquecimento das instâncias democrático-legislativas e científicas de elaboração do Direito, é que não falta juiz sensível ao argumento tão fácil, como antirrepublicano e politicamente ilegítimo, de que a voz do “parecerista a serviço do caso concreto” se sobrepõe à palavra do legislador e à própria doutrina dele divergente (por vezes, sequer citada ou explorada suficientemente).
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As contradições e perplexidades aqui apontadas, que não podem ser dissimuladas, nem normalizadas, se referem mais ao abuso do instituto e às suas implicações negativas a) na isonomia processual e b) na constituição da própria doutrina (como verdadeira communis opinio doctorum) falar de emendas parlamentares, o “jabuti”, no jargão vulgar, inseridas à meia-noite em sessões deliberativas –, o discurso do parecer contencioso exterioriza-se nas páginas de processos sem efetivo contraditório, amiúde em violação frontal à ampla defesa, além de resultar de encomenda remunerada.
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Diz-se que, no Brasil, justiça inclui-se entre os mais venerados privilégios dos ricos e influentes. Embora haja uma pitada de verdade na afirmação, sobressai o exagero, sobretudo quando se observa o notável crescimento da Defensoria Pública e do próprio Ministério Público (no processo civil coletivo), sem falar do fortalecimento da Advocacia Pública na representação judicial do Estado, com realce para a federal.
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Corretamente agiu o legislador, considerando que o Estado de Direito pressupõe um direito e um processo “baseados no respeito pelos direitos humanos, pela liberdade e pela igualdade jurídica de todos os cidadãos, ou mesmo de todos os habitantes”. O requisito de “paridade de tratamento” certamente haverá de incidir sobre a enxurrada de pareceres (=meio de defesa) no processo, incumbindo ao juiz o dever de zelar, também quanto a isso, pela isonomia entre as partes. Sabe-se que, no cotidiano judicial, divisor processual de águas (e também divisor de classe social) vem a ser a existência de duas categorias de partes, “litigantes com parecer” e “litigantes sem parecer”.
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A confusão entre parecer contencioso e doutrina enfraquece e deslegitima esta em favor daquele. Diga-se, desde logo: parecer contencioso não é, nem deve ser, considerado doutrina, embora se fantasie de pretensão doutrinária para mais fortemente influenciar o juiz. A doutrina tem por público-alvo os leitores (no plural), enquanto o parecer contencioso tem por público-alvo imediato só um leitor (no singular), o juiz.
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A separação entre doutrina e parecer contencioso atrai diferenças metodológicas e éticas, não se restringindo somente a elemento do pagamento recebido de cliente com interesse(s) jurídico(s) específico(s) e previamente definido(s). Remuneração financeira em si não é o problema. A interrogação é: quem paga, como paga, para que paga e em que circunstâncias paga? Doutrina verdadeira não é mercadoria à venda, quando muito aceita compensação na forma de direitos autorais, bolsas de pesquisa e prêmios. Algo bem diferente do parecer.
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De um lado, o doutrinador que busca financiamento (e revela a fonte) para trabalho investigativo de certa temática jurídica complexa, mesmo concreta, que desperta sua curiosidade ou ressente-se de melhor exploração científica, e depois divulga ou edita os resultados alcançados, pouco importando o teor das conclusões. Do outro, o especialista que, sob promessa anterior de remuneração, investiga questões jurídicas de escolha e de interesse de terceiro, daquele que remunera para sair vitorioso em demanda judicializada, estudo que, se contrariar as expectativas do litigante, só por acidente será juntado aos autos ou alcançará a luz do dia.
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O certo é que, atualmente, nem tudo o que falam ou escrevem professores de Direito decorre de labor do ensino ou do pensar acadêmico isento e, por isso, não se qualifica para compor genuína doutrina. Por débil espontaneidade intelectual, enforma certa incompatibilidade (até conflito de interesse) o pensar, mesmo de jurista reconhecido, que aflora a partir de parecer sob encomenda, destinado a uma das partes litigantes em processo do tipo Pedro contra Paulo.
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Vivemos infelizmente época em que, por deformidade desconhecida em outras ordens jurídicas que nos servem de modelo, no Brasil qualquer um se sente com a prerrogativa de, em parecer remunerado, afirmar que o que está na lei e mesmo na Constituição deve ser ignorado, e o que nelas se omite, ou mesmo se nega expressamente, deve-se julgar incluído.
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Muito do mundinho do parecer afasta-se das proposições em que se firma e se afirma o instituto da communis opinio doctorum (a doutrina). Sob tal enquadramento, no abuso de parecer o que se tem, quando muito, é arremedo de doutrina, de produção casuística, enviesada pelos limites dos fatos, do processo, das circunstâncias e das expectativas muito bem e previamente delimitadas de quem dele precisa e por ele está disposto a pagar.
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A consequência de tudo isso deveria ser o recebimento desses pareceres cum grano salis, além de – consequência natural do dever judicial de garantir a isonomia no processo – disparar providências de controle de seu uso pelo juiz, nomeadamente quando houver escasso crivo intransigente do contraditório ou insinuar-se depreciação da paridade de armas entre as partes.
A realidade deveria chamar a atenção daqueles antenados com a ordem jurídica democrática, motivo de preocupação para todos que acreditam que tanto o direito material como o direito processual devem ser, ambos, justos:
– parecer entregue aos julgadores, na véspera do julgamento, e não juntado aos autos;
– parecer que chega às mãos de certos julgadores, mas não de todos, excluído às vezes o próprio relator, que acaba surpreendido nos debates orais;
– parecer que repudia doutrina genuína escrita pelo mesmo autor, sob o pretexto de “esclarecimento” ou “reposicionamento”;
– parecer escrito por desembargador ou ministro aposentado, reinterpretando, ou mesmo negando, precedente de cujo julgamento participou, até como relator;
– parecer de desembargador ou ministro aposentado juntado em processo sob o crivo de seus ex-colegas de Câmara ou Turma;
– parecer em papel timbrado da instituição universitária a que pertence o autor, insinuando selo (impróprio) de legitimidade acadêmica;
– parecer citado em decisão e até em ementa, sem que tenha passado pelo teste do contraditório ou, pior, sem que integre os autos;
– parecer transformado em artigo de opinião em jornal de grande circulação, omitindo-se a origem e a remuneração da dita “opinião”.
Numa palavra, é o faroeste do discurso jurídico.
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(*) “Constituição e Código Tributário Comentados” – Thomson Reuters – Revista dos Tribunais (RT) em parceria com a Fazenda Nacional. Coordenação-geral de Claudio Seefelder e Rogério Campos.