Corregedor do TJ-SP questiona juiz que liberou presos pela Polícia Militar

O  corregedor-geral do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ricardo Anafe, acolheu representações de três parlamentares que questionam decisões do juiz Marcílio Moreira de Castro, de Araçatuba (SP).

O juiz determinou –em plantões judiciais– o relaxamento de prisões efetuadas por policiais militares em casos com indícios de tráfico de entorpecentes. O magistrado entendeu que não havia “fundada suspeita” para as prisões.

São autores das representações o deputado federal Guilherme Derrite, (PP-SP), ex-comandante da Rota, o senador Major Olímpio (PSL-SP), oficial PM da reserva, e o deputado estadual Frederico Braun D’Avila (PSL), produtor rural.

Segundo os representantes, “o magistrado proferiu decisão dissonante da realidade jurídica pátria, calcada em convicções pessoais e com alto grau de ativismo judicial”.

Nos autos, o juiz sustentou que “a nulidade de provas ilícitas existe para desincentivar abuso pela polícia”.

O caso retoma a discussão sobre a independência dos magistrados e o poder disciplinar das corregedorias.

Garantismo e independência do juiz

A decisão de Anafe ocorre quando está para ser julgado no Conselho Nacional de Justiça pedido de revisão para reverter a condenação de censura aplicada em 2018 ao juiz Roberto Luiz Corcioli Filho, do TJ-SP.

A censura foi motivada por representação em que 17 promotores acusavam o magistrado de promover, também em plantões judiciais, a “soltura maciça de indivíduos cujo encarceramento é imprescindível”.

Os advogados de Corcioli veem um “estranho cenário, em que respeitado juiz de direito é prejudicado, por exemplo, ao seguir a orientação jurisprudencial de Tribunais Superiores no âmbito penal, sabidamente ignorada pela Corte de que faz parte e que o condenou.”

O que está em discussão nos dois casos é a interpretação do artigo 240 do Código de Processo Penal e a suspeita de ilegalidades em operações de abordagens de suspeitos e buscas feitas por policiais militares e guardas metropolitanas.

Os dois casos colocam na ordem do dia algumas questões polêmicas:

– Em que medida o controle disciplinar permite aos corregedores interferir na independência judicial?

– Como definir se um juiz está judicando de forma militante, ou seja, deixando prevalecer o seu entendimento ideológico?

– Qual o risco de essas punições administrativas intimidarem outros magistrados?

O corregedor deu prazo de 15 dias para o juiz de Araçatuba oferecer defesa prévia.

Anafe vislumbrou “potencial caracterização de infração disciplinar, consistente em excesso aos limites impostos à atividade interpretativa a fim de prevalecer entendimento ideológico do magistrado com indícios, por consequência, de desvio de finalidade, afronta aos deveres de imparcialidade e prudência, bem como de atuação de natureza discriminatória”.

Na decisão, Anafe sustenta que o CNJ tem adotado o entendimento de “serem conciliáveis a independência judicial e o controle disciplinar de atos irregulares praticados por magistrados”.

Nervosismo genérico

Segundo o deputado federal Guilherme Derrite, o juiz Marcílio Moreira de Castro concedeu, no último dia 24 de outubro, liberdade provisória a um homem e duas mulheres, em caso com “fortíssimos indícios de tráfico interestadual de entorpecentes” (133 quilos de maconha).

O senador Major Olímpio representou o magistrado à corregedoria estadual e ao CNJ. Afirmou que a ação dos policiais “se deu em fiel cumprimento de todos os procedimentos policiais militares”.

Segundo a representação, os policiais militares fizeram abordagem em patrulhamento de rotina, porque os ocupantes do veículo “demonstraram nervosismo com a aproximação da viatura”, e “apresentaram contradições sobre o destino”.

Preso em flagrante delito, “o criminoso admitiu ter sido contratado para transportar as drogas de Ponta Porã (MS) até Ribeirão Preto (SP)”.

Após recurso do MP, o TJ-SP suspendeu a decisão e determinou a prisão preventiva dos três.

Na ocasião, o juiz Castro prestou informações à corregedoria. Alegou que a decisão foi motivada e fundamentada. Afirmou que proferiu sentença em caso semelhante, “envolvendo tráfico interestadual de 487 quilos de cannabis sativa, resultante de flagrante deflagrado por operação de inteligência da PM em conjunto com a Polícia Federal, condenando os réus a mais de 13 anos de prisão.

No caso questionado, entendeu que os policiais apenas atestaram “um genérico e indefinido grau de nervosismo”, o que, segundo o magistrado, não configura “fundada suspeita”, de acordo com o Código de Processo Penal.

“O Brasil é República democrática, não se admite que a força policial, sob mínimas suspeitas de caráter subjetivo, pare uma família inteira em via pública, em automóvel, e pergunte invasivamente de onde estão vindo e para onde iriam”.

Segundo o juiz, não havia uma investigação policial específica e não havia sequer denúncia anônima. “Os custodiados não tentaram se evadir, não haviam violado qualquer lei de trânsito, a documentação do carro estava em ordem como afirmado pelos próprios policiais.”

“Não havia fundada suspeita para mandar os ocupantes descerem do carro e em seguida até mesmo revistar o interior das malas e porta-malas. A conduta é abusiva e este juízo não pode aquiescer com o fato de que inúmeras famílias estejam sendo paradas em via pública, em seus automóveis, por mínimas suspeitas rasas, e estejam sendo submetidas a invasivas buscas pessoais e revistas veiculares”, afirmou o magistrado.

“Sequer consta que havia cães farejadores no local para indicarem a presença de drogas, o que em tese poderia estabelecer fundada suspeita”.

O juiz registrou, ainda, que os suspeitos “não ostentam antecedentes”. A ocorrência não qualificou qualquer outra testemunha, além dos policiais militares. Os termos de depoimento de ambos são idênticos, “cópias ipsis litteris, palavra-por-palavra, um do outro”.

Finalmente, o juiz registrou: “Não homologo a prisão em flagrante ilegal”. Castro concedeu liberdade provisória sem fiança e sem fixar qualquer medida cautelar. Autorizou a imediata destruição da droga, armazenando-se material suficiente para eventual contraprova.

Casos análogos

O corregedor Anafe afirmou que deixou de tecer juízo nas inúmeras representações envolvendo insurgência contra decisões judiciais “as quais devem ser atacadas pelos recursos próprios previstos na legislação vigente, por se tratar de matéria de natureza jurisdicional”.

Entretanto, viu “elementos a demonstrar que o magistrado apartou-se do dever de exercer a judicatura dentro das balizas impostas pela ordem legal, e em cumprimento dos deveres funcionais da magistratura, de forma a permitir, assim, excepcionar a regra da não incursão da Corregedoria de Justiça em decisões judiciais, e impor a apuração, no âmbito administrativo-disciplinar, da conduta do magistrado”.

O corregedor entendeu que deveria analisar outras decisões exaradas pelo magistrado em casos análogos, “de forma a identificar a predisposição do juiz em burlar a interpretação correta das normas, substituindo os critérios legais pelos seus próprios, para fins de atender sua ideologia pessoal”.

No mesmo plantão judiciário, em caso de prisão em flagrante delito por tráfico de drogas, o magistrado entendeu ser ilegal a prisão, uma vez que os policiais abordaram o réu sem mandado de busca e apreensão.

Os policiais abordaram um ônibus, sem qualquer “fundada suspeita”, afirma o juiz Castro. Não havia denúncia. Os policiais afirmaram um suposto “extremo nervosismo do ocupante da poltrona de número 31”.

O fato de o réu ser possuidor de antecedentes não autoriza abordagens policiais para fins de “averiguação”, diz o juiz. A polícia não qualificou e não obteve o termo de interrogatório dos outros passageiros.

Asilo inviolável

Em outro caso, o juiz Castro entendeu que eventual investigação –confidencial– deveria ter sido realizada pela Polícia Civil. “Não havia qualquer flagrante de ato criminoso. O custodiado estava apenas em frente à residência, sem praticar qualquer conduta suspeita no momento da abordagem.

“Revistado, nada foi encontrado com o custodiado”. Atuaram com fundamento apenas em denúncias anônimas. “Os termos de declarações não dizem que o custodiado tenha consentido com a entrada em sua residência, “asilo inviolável”.

“Não incumbe à Polícia Militar realizar investigação policial extrajudicial, sem autuação por escrito, sem supervisão pelo Ministério Público, sem atuação pelo juízo das garantias constitucionais”, disse o juiz.

O corregedor afirma que, “mais uma vez o magistrado menospreza a relevante atuação da polícia militar no combate à prática de crimes”.

“Quando fazem o policiamento ostensivo, comumente recebem informações dos próprios moradores de áreas onde ocorre o tráfico de drogas, que denunciam veladamente quem são os traficantes, porque não concordam com a prática do crime em sua comunidade, mas não podem expor suas identidades por medo de retaliação dos traficantes, seus próprios vizinhos”.

Segundo Anafe, o magistrado “arvorou-se em defensor dos direitos daqueles que são abordados por policiais militares, esquecendo-se que no devido processo legal a função do juiz é outra, burlando, dessa forma, o próprio sistema de paridade de armas que vigora no processo penal”.

“Resta evidente, portanto, que o magistrado deixou de agir com a prudência que o cargo lhe impõe e não atentou para as consequências que pode provocar, causando insegurança jurídica”, afirmou Anafe.