O machismo estrutural e a resistência para adequar os nomes de entidades

Sob o título “A ressignificação de OAB, IAB e AMB“, o artigo a seguir é de autoria do advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). [1]

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O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) enviou à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) e à Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) sugestão de alteração de seus respectivos nomes para Ordem da Advocacia do Brasil, Instituto da Advocacia do Brasil e Associação da Magistratura Brasileira.

Esta última, para não dizer que foi ingerência nossa, foi feita pela Comissão de Magistrados e Magistradas do IBDFAM, liderada pelo desembargador Jones Figueiredo, decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) e o mais inovador entre todos nós.

Foi cumprindo nossa função político-institucional que fizemos tal sugestão para adequar a nomenclatura aos novos tempos de não exclusão do gênero feminino.

Algumas entidades, como por exemplo o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) já nasceram sem esse “problema de gênero”.

Embora isso seja apenas adequação e atualização de expressões para uma sociedade contemporânea, o simples ofício a essas entidades provocou mal-estar, inclusive entre os próprios associados, cuja discordância culminou até mesmo em desfiliações ao IBDFAM, entidade que completou 23 anos de existência em 25 de outubro deste ano.

É compreensível que mudanças provoquem insatisfações e inquietações. Nesse caso, é importante prestar atenção às resistências.

O discurso objetivo vem em nome da defesa da língua portuguesa, ou seja, que o masculino usado no plural inclui o feminino. Sim, sempre foi assim e parece que continuará sendo ainda por muito tempo. Mas no fundo não é só isso. Temos de enxergar além daquilo que aparenta ser.

Em nossa sociedade patriarcal o mundo ainda é masculino. As instituições são masculinas. Foram os homens quem construíram os prédios, as pontes, os veículos etc.

Até pouco tempo atrás o homem era o chefe da sociedade conjugal, o que só mudou oficialmente com o Código Civil Brasileiro, CCB-2002, as mulheres não votavam (1934) etc.

Essas estruturas só começaram a mudar com o movimento feminista, a grande revolução do século XX, que ainda vem lutando para romper essa hierarquia entre homens e mulheres. O movimento feminista, ainda necessário, é a reinvindicação e a compreensão da mulher como sujeito de direitos e de desejos, tanto quanto os homens. E a pergunta que ainda paira no ar é: por que a igualdade e o desejo das mulheres incomoda tanto?

As palavras têm força e poder. Em linguagem psicanalítica, têm significado e significante.

Por exemplo, o CCB-1916, em vigor até 2002, em seu artigo 1744, III, dizia que a mulher desonesta que viveu na casa paterna poderia ser deserdada pelo pai.

O conceito de mulher honesta traz consigo os signos e significantes do sistema patriarcal, que estabeleceu e estabelece ainda uma relação de poder entre os gêneros.

Essa dominação de um “sexo” sobre o outro deixou marcas profundas em nossa cultura, as quais até hoje espalham seus significados e significantes (cf. “Meu Dicionário de Direito de Família e Sucessões — Ilustrado” — verbete “significante”). Por isso, precisamos ainda de leis como a Maria da Penha e ações afirmativas como a que o IBDFAM propôs.

As palavras vieram significando comportamentos e condutas, e o Direito, especialmente o de Família, consequentemente, expressando tais palavras em seus textos legislativos.

Um outro bom exemplo disso é a expressão “desquite”, substituída pela Lei do Divórcio, em 1977, por “separação judicial”. Desquitada era mais que um estado civil. E para a mulher tinha um peso diferente do que para o homem, e veiculava o significante de um comportamento sexual.

Mulheres desquitadas eram vistas como alguém que já não teria sua sexualidade controlada pelo pai ou pelo marido, e, assim, eram discriminadas, como se elas significassem um “perigo” para os homens casados.

Claro que essa discriminação não mudou totalmente quando passaram a ser chamadas de separadas judicialmente, mas tirou o peso do significante que sobre as mulheres recaía. Da mesma forma, muda o significante quando passamos a chamar casais homossexuais, casais homoafetivos, visitas por convivência, interdição por curatela etc.

Mudar as palavras pode ressignificar o sentido das coisas.

Em uma sociedade em que o machismo é estrutural, e está entranhado em cada um de nós, inclusive em muitas mulheres, as palavras começam a ter uma importância social significativa.

Assim, passar a chamar uma entidade de classe como OAB, IAB e AMB, e elas nem mesmo precisarão mudar suas conhecidas siglas, identificando-as pelo exercício da profissão, advocacia e magistratura, não é um simples capricho ou vaidade das mulheres.

Essa mudança, simples em sua forma, e que a ninguém agride, traz consigo, em seu conteúdo, um significado e um significante que podem ajudar a ir rompendo com o machismo estrutural.

Afinal, se já está enunciada na Constituição da República a igualdade entre homens e mulheres, é preciso continuar a colocar em prática tal igualização, ainda que seja usando dos símbolos e do simbólico das palavras.

[1] O autor é advogado, mestre pela UFMG e doutor pela UFPR em Direito Civil e autor de vários artigos e livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

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