Como eliminar o mito de que mulheres são culpadas pela violência que sofrem
Sob o título “A culpa é da vítima?“, o artigo a seguir é de autoria de Tereza Cristina Maldonado Karturchi Exner, corregedora geral do Ministério Público de São Paulo (*), e Liliana Mercadante Mortari, vice-corregedora geral (**).
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“Veja, pode ser uma utopia, ainda que das realizáveis, mas estou esperando que aqui, na Espanha ou em qualquer outro país, os homens organizem uma manifestação, somente eles, que as mulheres fiquem nas calçadas, uma manifestação somente de homens saindo à rua indignados pela violência que homens cometem contra as mulheres” (“Democracia e universidade”/José Saramago.-Belém: ed.ufpa; Lisboa: Fundação José Saramago, 2013, pag. 53).
É fato que o nosso país tem uma das mais avançadas legislações em matéria de combate à violência de gênero, com destaque para a Lei Maria da Penha e o acesso às medidas protetivas consolidadas como um direito das vítimas, o caráter hediondo do abjeto delito de estupro de vulnerável, bem assim como a criminalização do feminicídio.
De outro lado, pesquisa feita no site do Conselho Nacional de Justiça aponta que o Brasil terminou o ano de 2019 com mais de um milhão de processos de violência doméstica e 5,1 mil processos de feminicídio em tramitação na Justiça.
Nos casos de violência doméstica, houve aumento de quase 10%, com o recebimento de 563,7 mil novos processos.
Os casos de feminicídio que chegaram ao Judiciário cresceram 5% em relação a 2018.
Os dados estão no Painel de Monitoramento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (cnj.jus.br, publicação de 09/03/2020).
Na primeira atualização de um relatório produzido a pedido do Banco Mundial, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destaca que os casos de feminicídio cresceram 22,2%, entre março e abril deste ano, em 12 estados do país, comparativamente ao ano passado.
Intitulado “Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19”, o documento foi divulgado em junho de 2020 e tem como referência dados coletados nos órgãos de segurança dos estados brasileiros (agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos, publicação de 01/06/2020) .
Poderíamos seguir citando demais dados estatísticos e diplomas legislativos em vigor. Mas prosseguimos falando da realidade que insiste em nos lembrar que, se nossas leis são modernas, os dados de informação demonstram que elas não vêm se mostrando eficientes como meio de dissuasão social no que toca ao cometimento de crimes que vitimam meninas e mulheres ano após ano em nosso País, independentemente de sua classe social, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional e credo religioso.
Há alguns dias, durante uma sessão na Assembleia Legislativa de São Paulo, fomos surpreendidos por uma cena estarrecedora: um deputado assediou ao vivo e a cores uma deputada, aproximando-se dela por trás, enquanto ela dialogava com o presidente daquela Casa Legislativa.
Dias depois, a imprensa noticiou o tratamento pouco urbano dispensado por um magistrado que atua perante uma Vara da Família e Sucessões às mães que ali estavam para buscar legitimamente aquilo que entendiam ser seus direitos. Neste caso, a propósito, o canal que hospedava o site noticioso saiu do ar por horas, sem explicações, fazendo com que o programa tivesse que migrar temporariamente para outro divulgador.
Por fim, em pleno Natal, festa de celebração do amor, da harmonia e da solidariedade, um pai assassina sua ex-mulher a facadas, diante de suas três filhas, com idades de 9 anos (gêmeas) e 12 anos.
Esses três fatos ocorreram no espaço de poucos dias neste mês de dezembro de 2020, no encerrar de um ano marcado por tantas mortes, dores e tragédia decorrentes da pandemia do Coronavírus, e que, como visto acima, contribuiu para o recrudescimento dos crimes perpetrados no âmbito doméstico.
E qual ou quais seriam as razões para tanto?
Falha dos operadores do direito na aplicação das leis? Crença de que o avanço das leis penais faria desaparecer, como que por um passe de mágica, o ancestral e estrutural desprezo que muitos homens –e por que não dizer– muitas mulheres ainda têm com relação ao papel social do feminino, que não poderia ser outro que não o da submissão?
Necessidade de maior debate acerca da questão, com criação de políticas públicas que deem voz às vítimas, para que relatem suas experiências e histórias, e de programas destinados aos agressores para sua reeducação psicossocial?
Pensamos que não há resposta única, mas sim a necessidade de um encadeamento de medidas urgentíssimas tendentes a transformar todo e qualquer cidadão, não importa qual sua função ou atividade, em um agente de socialização, começando tal mudança pelos padrões e valores adotados na educação familiar, com respaldo na educação formal e, sobretudo, no sistema de Justiça.
Não há mais espaço para qualquer forma de preconceito ou discriminação, notadamente por parte daqueles que exercem uma função pública. Afinal, na condição de defensores do regime democrático que, mais do que consenso, exige respeito e diálogo, devemos lutar intensamente, com todas as nossas forças, para que a consideração a todas as minorias se torne realidade.
A autorização de certos comportamentos sociais por parte dos homens, sob o falso e ultrapassado argumento de que agem movidos pelos instintos da paixão e busca da honra, apenas conformam comportamentos covardes, disfuncionais sob o aspecto psicossocial e que evidenciam, ainda hoje, que, para muitos, a mulher é um objeto de pertencimento, um espaço-corpo merecedor de todo e qualquer abuso, consolidando a desigualdade estrutural do poder.
E, a despeito dos avanços existentes, ainda há um longo caminho a ser percorrido, permeado de obstáculos, de alguns retrocessos que, por vezes, assumem ares de aparente inocência, valendo-se de novas roupagens argumentativas, mas que precisam ser rapidamente descobertos e neutralizados.
Recentemente uma decisão da nossa Suprema Corte abriu espaço para absolvições de assassinos calcadas na absurda e ilegal tese da legítima defesa da honra, construção interpretativa feita com base em princípios, padrões e conceitos morais que acreditávamos terem ficado relegados ao século passado.
Consoante noticiado, a Primeira Turma assim decidiu aparentemente acolhendo inconstitucionalidade do artigo 593, III, “d” do Estatuto Repressivo Penal, que permite apelação contra decisões do Tribunal do Júri quando a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos.
O argumento preponderante foi o do respeito à soberania dos veredictos que, dessa forma, acabou por se sobrepor ao princípio maior que deve impregnar todo e qualquer regime democrático, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana.
De se destacar que a discriminação contra mulheres visivelmente existe no mercado de trabalho, nos rendimentos a menor por elas auferidos, o que se reflete na baixa ocupação feminina nos postos de poder. E também nas reuniões políticas ou de negócio, quando são mais frequentemente interrompidas e muitas vezes pouco ouvidas.
Ainda, no simples caminhar pelas ruas ou ao se utilizarem de transporte público –quando são comuns os assédios de toda a ordem– chegando ao despudor de tal situação ocorrer em um palco público, à vista de membros de uma Casa Legislativa.
Mais, na conduta descortês dispensada às mulheres que buscavam na Justiça a proteção de seus direitos, atingindo-se o ápice com o comportamento de um pai que assassina sua ex-mulher, diante de suas filhas, na véspera do Natal.
Diante de tais fatos, a conclusão é uma só: falhamos todos, a sociedade e as instituições, não havendo mais tempo a perder.
Há que se descontruir a mitificação social de culpa das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, em todas as suas formas, como disciplina o art. 5º, “caput” , da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), assim como das mulheres vítimas da violência sexual.
Para coibir a repetição de tais infâmias, e de tantas outras que não cabe relatar neste espaço –atentos a que a pacificação da família não deve ser buscada a troco de um silêncio cúmplice com as atrocidades cometidas no âmbito dos lares brasileiros– urge mobilizarmos todas as estruturas de poder, revolucionando os hábitos, buscando um equilíbrio entre os gêneros, sem olvidar que gênero e classe são conceitos distintos.
Afinal, um homem pobre ainda tem os seus privilégios em razão do sexo. Com efeito, difícil encontrar um homem, não importa a sua condição social, que receie sofrer agressões ou que tenha medo de ver os seus filhos agredidos, ou, ainda, que tenha que mudar de emprego por medo da sua mulher ou da ex-mulher.
E pontuamos tal fato porque, embora sejamos todos seres humanos –como dizem alguns, na vã tentativa de reduzir ou desmerecer qualquer debate acerca do tema– a verdade é que certas situações ocorrem somente com as mulheres e justamente porque são mulheres. E esse foco não pode ser perdido ou descartado.
Imprescindível, portanto, um maior preparo de todos os profissionais que compõem a rede de Justiça para a abordagem da questão relacionada à violência de gênero, de modo que saibam ouvir com respeito e empatia, jamais culpabilizando a vítima.
Também se mostra fundamental a adoção de políticas públicas no âmbito de todas as esferas de poder e de governos, propiciando espaço de fala para as mulheres vítimas da violência, de modo que não sejam mais vistas como as responsáveis pela desarticulação de seu lar, ao reprovável argumento de que a escolha do companheiro foi delas, o que acaba por desestimular novas denúncias.
A vergonha não é apanhar. A vergonha –mais do que isso, o crime– reside no ato covarde de agredir.
Concluímos afirmando que o Direito Penal isoladamente considerado já não basta para a realização das mudanças que queremos ver implementadas, havendo necessidade, isto sim, de que cada um de nós tenha consciência do problema relacionado à desigualdade de gênero e assuma a responsabilidade pelo fato de que a realidade só poderá mudar se houver empenho de nossa parte, homens e mulheres unidos por um mundo mais igualitário, prestando contas de nossas ações e cobrando soluções.
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(*) Eleita corregedora no biênio 2019/2020. (**) Eleita vice-corregedora no biênio 2021/2022.