Um ano de retrocesso nos Três Poderes
Em 31 de dezembro de 2019, o Blog publicou post sob o título “Um ano inesquecível… no pior sentido”. Um resumo de fatos relevantes publicados neste espaço em 2020 sugere que os retrocessos –nos Três Poderes– fazem esquecer o que aconteceu no período anterior.
A sociedade aparenta estar doente, como sugeriu a ministra Cármen Lúcia no inicio de 2020, diante de um feminicídio. A sensação é agravada pela pandemia e pela irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro e de seu desgoverno, que expõe a população a riscos e descumpre normas de proteção respeitadas internacionalmente.
Um dos primeiros posts deste ano tratou da decisão unânime da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, que negou liberdade a um acusado de matar a companheira com um tiro na cabeça, à queima-roupa, no dia do aniversário dela.
Constou nos autos que ela “estaria desnuda no banheiro, possivelmente sentada no vaso sanitário”.
Para a relatora Cármen Lúcia, esse caso “parece mostrar uma sociedade adoecida”.
“É preciso tomarmos cuidado se quisermos chegar a um nível de civilidade e não retornarmos a níveis de barbaridade”, alertou a ministra.
É possível, sim, que estejamos retornando à barbárie. Na véspera do Natal, uma juíza do Rio de Janeiro foi assassinada a facadas pelo ex-marido na frente de suas três filhas.
Recentemente, a Primeira Turma do STF decidiu que –em caso de feminicídio tentado– o Ministério Público não pode recorrer de decisão absolutória absurda de um Tribunal do Júri.
Ou seja, o mesmo STF alterou décadas de aplicação de dispositivo do Código de Processo Penal, que permite que as partes apelem quando a decisão for manifestamente contrária à prova dos autos.
Esse entendimento, se for mantido, contribuirá “para gerar impunidade dos feminicídios, dos crimes praticados por gente poderosa, das execuções sumárias praticadas por agentes públicos ou por grupos de extermínio”, diz o procurador de Justiça Luiz Antonio Marrey.
Bolsonaro faz o que quer
“O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República”, afirmou em fevereiro o então decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello.
Então em licença médica, Celso de Mello disse que Jair Bolsonaro não estaria à altura do cargo se apoiou ato contra o Supremo Tribunal Federal e contra o Congresso.
Bolsonaro não pode tudo, mas continua desafiando as instituições.
Em abril, o Colégio de ex-Presidentes da Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, a maior entidade da advocacia do país, emitiu nota de repúdio à participação do presidente em atos de apoio ao AI-5 e à intervenção militar.
“As recentes participações do presidente da República em atos de apoio ao AI-5 e à intervenção militar colocam o governo em rota de colisão com a democracia e as suas instituições. Tal conduta, além de negar o Estado de Direito, é manifestamente contrária às normas de distanciamento social estabelecidas pela OMS e pelo Ministério da Saúde diante da pandemia da Covid-19 que assola o mundo.”
Na ocasião, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota pública exortando as instituições a reconduzirem o país à normalidade democrática, “antes que seja tarde”.
Diante do quartel-general do Exército, Bolsonaro afirmou, segundo a entidade: “Acabou a época da patifaria”, “agora é o povo no poder, não queremos negociar nada”.
O presidente tossiu e levou a mão à boca ao final do discurso.
Em março, a presidente da AJD, juíza do Trabalho Valdete Souto Severo, escreveu neste espaço:
“Entre o pânico e o descaso, o que mais assusta, porém, é a imbecilidade de quem, ciente da gravidade da doença e tendo o dever de agir para prevenir a disseminação e proteger a população que o elegeu, adota conduta absolutamente irresponsável.”
Manifesto assinado por 700 profissionais do direito –de diferentes matizes políticas e ideológicas– afirmou “que é preciso dar um BASTA a esta noite de terror com que se está pretendendo cobrir este país”.
O ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles publicou artigo sob o título “O caso Jair Messias Bolsonaro”. Afirmou que, juridicamente, é impossível o procurador-geral Augusto Aras arquivar a investigação sobre as razões que levaram Sergio Moro a exonerar-se do cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública.
“Não cabe –como tenho ouvido aqui e acolá– tipificar-se criminalmente a conduta de Jair Messias Bolsonaro como advocacia administrativa”, disse Fonteles.
“Que o Procurador-Geral da República, presente o princípio reitor da atividade do Ministério Público, que é o princípio constitucional da independência funcional – §1º do artigo 122, da Constituição Federal – cumpra com o seu dever funcional e, no caso Jair Messias Bolsonaro, acuse-o ante o Supremo Tribunal Federal pelo crime de prevaricação”.
Aras poupa Bolsonaro
Em março, o procurador-geral da República Augusto Aras determinou o arquivamento de memorando em que cinco subprocuradores-gerais pediam que recomendasse a Bolsonaro evitar manifestações contra a política do Ministério da Saúde no combate ao coronavírus. O episódio trouxe à tona as divergências internas na Procuradoria-Geral da República.
Segundo alegaram, Bolsonaro criticou em cadeia nacional o fechamento de escolas e do comércio, “transmitindo à população brasileira sinais de desautorização das medidas sanitárias em curso, adotadas e estimuladas pelo próprio Poder Público Federal”.
Aras poupou Bolsonaro e criticou os signatários do memorando. Considerou a proposta “juridicamente inviável”. Afirmou que não há “indícios de eventual prática de ilícito de natureza criminal por parte do presidente da República”.
“Neste momento em que o país atravessa estado de calamidade pública, exige-se do Ministério Público brasileiro mantenha-se afastado de disputas partidárias internas e externas, sem entraves à atuação dos órgãos competentes no cumprimento de seus deveres, a fim de que todos vençamos o coronavírus”, afirmou o PGR.
Ministério Público esvaziado
“Jair Bolsonaro e Augusto Aras não enganaram ninguém. Sabia-se do que o primeiro era capaz”, publicamos em março. “Aras combinou previamente o discurso com o presidente e ganhou a cadeira de Raquel Dodge. Ambos desmontaram equipes no mesmo estilo: eu mando, eu nomeio, eu tiro.”
O ano de 2020 começou com o esvaziamento da Lava Jato no Ministério Público Federal, intento que o procurador-geral levou adiante nos meses seguintes.
Aras substituiu o coordenador do grupo da Lava Jato na PGR, subprocurador-geral José Adonis Callou de Araújo, pela subprocuradora-geral Lindora Maria Araújo. Callou de Sá fora convidado pelo vice-procurador-geral José Bonifácio Borges de Andrada, e teria aceito com um compromisso de autonomia que, aparentemente, não se confirmou. Em março, Aras dispensou Borges de Andrada.
O PGR ignorou normas internas, introduziu mudanças no estatuto da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU) e interrompeu os mandatos em exercício de 16 conselheiros e coordenadores.
O ministro Gilmar Mendes, do STF, indeferiu pedido para suspender duas portarias de Aras, que alteraram o estatuto da ESMPU e afastaram conselheiros e coordenadores da instituição.
Aras nomeou diretor da ESMPU o subprocurador-geral Paulo Gustavo Gonet Branco, ex-sócio de Gilmar Mendes no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
O procurador Sidney Madruga foi nomeado suplente na coordenação de ensino da ESMPU. Como procurador regional eleitoral, Madruga teria tentado encerrar investigação contra o senador Flávio Bolsonaro, sem realizar nenhuma investigação.
Aras promoveu a militarização no MP. Nomeou o procurador de Justiça Militar Jaime de Cassio Miranda para o cargo de secretário-geral do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O cargo nunca tinha sido exercido por membro do Ministério Público Militar.
A nomeação seria uma retribuição ao apoio de Miranda quando Aras foi escolhido por Bolsonaro. Miranda fez lobby para tentar ocupar a cadeira da então PGR Raquel Dodge.
Aras havia nomeado o general Roberto Severo para assessor especial para Assuntos Estratégicos da PGR (no Diário Oficial, omitira a condição de militar, tendo sido apresentado como Doutor em Ciências Militares).
Resistência interna
Em junho, Aras sofreu derrota na eleição de subprocuradores-gerais para duas vagas no Conselho Superior do Ministério Público Federal. Foram eleitos os subprocuradores-gerais Mario Bonsaglia e Nicolao Dino, que obtiveram mais votos que os candidatos apoiados pelo PGR: Carlos Frederico Santos e Maria Iraneide Santoro Facchini.
Janio de Freitas comentou na época: “as apreciações menos desfavoráveis ao preferido por Bolsonaro conceituaram Augusto Aras com a mesma imagem: “uma caixa-preta na PGR”.
“Como Geraldo Brindeiro, o engavetador-geral da República, Aras parece ver a Procuradoria-Geral como uma milícia a serviço da Presidência”, escreveu o colunista.
Em agosto, Aras levantou suspeitas contra procuradores das forças-tarefas, em debate com membros do grupo Prerrogativas, que reúne criminalistas defensores de réus da Lava Jato. Nesse encontro, Aras disse que a meta de sua gestão na PGR é “abrir a instituição para que jamais se possa dizer que tenha caixas-pretas”. “Lista tríplice fraudável nunca mais”, afirmou.
No dia seguinte, a força-tarefa da Lava Jato contestou: “A ilação de que há ‘caixas de segredos’ no trabalho dos procuradores da República é falsa, assim como a alegação de que haveria milhares de documentos ocultos”.
Em dezembro, o Blog revelou que Aras deflagrou com antecedência de 14 meses o processo de sucessão da conselheira Ivana Farina Navarrete Pena, que ocupa a vaga do Ministério Público dos Estados no Conselho Nacional de Justiça. A iniciativa foi vista no CNJ como um recado para a conselheira de que ela não seria reconduzida, por pertencer ao grupo da ex-PGR Raquel Dodge.
O debutante CNJ
Em junho, o Conselho Nacional de Justiça completou 15 anos de existência. Na avaliação do juiz Rubens Curado Silveira, que foi secretário-geral do órgão (2009/2010) e conselheiro (2013/2015), o CNJ “carrega uma história de vários acertos e avanços, permeados por alguns desacertos e retrocessos”.
Segundo ele, “o saldo é altamente positivo”. Mas aos 15 anos, o debutante presenteia a sociedade com uma controvertida decisão: o reconhecimento do “poder” (quiçá absoluto) do advogado do réu para, por ato unilateral, suspender prazos processuais”.
O “enterro” do CNJ foi anunciado por ex-conselheiros no final da gestão do ministro Ricardo Lewandowski (2014/2016), que abriu o órgão de controle do Judiciário ao lobby das associações de juízes e presidiu o conselho com decisões marcadas por prepotência, corporativismo e falta de transparência.
Rubens Curado definiu a administração Lewandowski como “imperialismo presidencialista”.
Sobre o aniversário do CNJ, o Blog pediu um artigo ao juiz aposentado Danilo Campos, de Minas Gerais. Ele é autor do primeiro pedido de procedimento instaurado no CNJ, em 2005, quando denunciou o tráfico de influência na magistratura mineira.
Em dezembro de 2018, o STJ anulou decisão do TJ de Minas Gerais que condenara o juiz à pena de prisão, sob acusação da pratica dos crimes de difamação e calúnia contra membros da comissão examinadora de um concurso público.
“O CNJ que não soube moralizar a carreira dos juízes e que não pune quem deve, não se constituiu verdadeiramente como órgão de controle externo do Judiciário, que continua sendo governado e manipulado por cúpulas corruptas e antidemocráticas, cujo único interesse é manter-se no poder ao custo do sacrifício da verdadeira justiça”, escreveu Campos.
A procuradora da República aposentada Ana Lúcia Amaral escreveu que “o CNJ deveria abrir as masmorras do Poder Judiciário, para que todo lixo jogado para debaixo do tapete viesse a público”.
“Ambientes fechados deterioram. A depuração que se esperava promover via CNJ seria para o bem do Poder Judiciário, mas nada de transformador aconteceu”, disse ela.
“Aqui é o país onde a lei não pega. Não são só criminosos que ficam impunes, ao permitir-se chicanas que procrastinam o feito até a prescrição. Os violadores das normas civis e administrativas são premiados com processos sem fim.”
Em outubro, ao saber que a Câmara Federal elegeria para conselheiro do CNJ o inexperiente advogado Mário Henrique Aguiar Goulart Ribeiro Nunes Maia, filho do ministro do STJ Napoleão Nunes Maia, um magistrado desabafou: É uma vergonha! O órgão que empunhou a bandeira contra o nepotismo agora o acolhe!
Como este Blog registrou, o lobby para a aprovação de Mário Henrique no CNJ –um exemplo de nepotismo e filhotismo– e o projeto para brecar a investigação de suspeitos de corrupção têm em comum o “esforço concentrado” da Câmara antes do final do mandato do atual presidente, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), em fevereiro.
Cadeira do decano
A vaga que seria aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello estimulou a bajulação de eventuais candidatos. Entre os citados como aspirantes à cadeira do decano, eram citados o PGR Augusto Aras e o então presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha –a quem Bolsonaro acenara com a possibilidade de indicá-lo, preterindo um substituto “terrivelmente evangélico” não identificado.
Em junho deste ano, Dias Toffoli e Noronha não dividiram o plantão com os vice-presidentes do STF e do STJ. Ambos aproveitaram o desgaste do Executivo para firmar posições.
No plantão judicial, Noronha concedeu prisão domiciliar a Fabrício Queiroz –ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro– e a Márcia Aguiar, mulher de Queiroz, então foragida da Justiça.
O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) ofereceu reclamação disciplinar ao CNJ contra Noronha. O pedido foi arquivado sumariamente pelo então corregedor nacional, Humberto Martins, sob o argumento de que não cabe a intervenção da corregedoria para avaliar o acerto ou desacerto de decisão judicial.
O escolhido para suceder Celso de Mello foi Kassio Nunes Marques, então membro do TRF-1, advogado que fez carreira rápida graças ao Quinto Constitucional.
Sob o título “Saiba quem é o inesperado candidato da disputa pela vaga de Celso de Mello“, o Blog antecipou um perfil do magistrado piauiense.
Ele foi um dos candidatos à vaga do ministro Gilson Dipp no STJ, aposentado em 2014. Kassio Nunes contou na ocasião com o apoio do presidente nacional da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, e do senador Renan Calheiros, do PMDB-AL.
O então advogado Kassio Nunes Marques e o advogado Marcus Vinicius Coêlho ajuizaram, cada um, no Tribunal de Justiça do Piauí, controvertidas ações contra a Toyota do Brasil que resultaram em indenizações milionárias, em valores exorbitantes, a partir de alegados defeitos de fabricação de veículos.
A AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) e a AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil) apoiaram a indicação de Kassio Nunes, enquanto juízes externavam insatisfação, em listas fechadas, com receio de sofrerem intervenções do CNJ.
A associação de magistrados estaduais de Goiás chegou a questionar a iniciativa da AMB, silenciando depois.
A AMB e a Ajufe não consultaram os magistrados da base. Aderiram ao expediente de Augusto Aras, que evitou a lista tríplice da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República).
“Mergulharam de cabeça na agenda bolsonarista, encorpando os interesses políticos imediatos do Centrão. Escolheram um indicado quando, a rigor, ainda não existia a vaga, pois o decano continuava ministro.”
Transferiram ao Senado –com suas sabatinas geralmente conciliatórias– uma seleção prévia de interesse público e da magistratura.
Como a Folha registrou, Kassio Nunes Marques se alinhou aos interesses de Bolsonaro nos dois julgamentos mais importantes dos quais participou desde que chegou no STF.
“Em ambas as oportunidades, o ministro ficou isolado e não foi acompanhado por nenhum colega na defesa das teses que beneficiavam os planos do chefe do Executivo.”
A juíza federal Maria do Carmo Cardoso, do TRF-1, foi citada como conselheira jurídica da família Bolsonaro e madrinha da indicação de Kassio Nunes.
Ela faz parte de um grupo de magistrados que circula em torno do senador Renan Calheiros (MDB-AL) e do também alagoano ministro Humberto Martins, presidente do STJ. Martins é considerado um afilhado de Calheiros.
A figura central desse grupo é o advogado Cesar Asfor Rocha, ex-presidente do STJ, que deixou o cargo em 2012 mas ainda é influente no Judiciário.
Alvo de investigação sobre suposto esquema de tráfico de influência com desvio de recursos públicos do Sistema S, em outubro Asfor Rocha foi nomeado membro do Conselho Editorial do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.
Um mês antes a Polícia Federal cumpriu ordens de busca em escritórios do advogado e de seu filho, o advogado Caio Rocha.
Legado de Toffoli
Antes de assumir a presidência do STF, o ministro Dias Toffoli convidou o general Fernando Azevedo, atual ministro da Defesa, para assessorá-lo em seu gabinete. O objetivo de Toffoli seria exercer no Supremo o papel de articulador entre a farda e a toga.
Como o Blog registrou, a iniciativa foi tomada no “cenário conturbado pela campanha eleitoral de um candidato à Presidência da República que instigava membros da corporação militar, elogiava torturadores e pregava o armamento da população”.
O candidato à Presidência foi eleito e fez o que anunciou durante a campanha. E esvaziou a pretensão de Toffoli de vir a ser o mediador entre os Três Poderes.
Bolsonaro liderou um grupo de empresários em constrangedora visita de surpresa à Suprema Corte. Estava acompanhado do general Azevedo, com quem também sobrevoou de helicóptero uma manifestação contra o Judiciário.
Azevedo foi substituído no gabinete de Toffoli pelo general Ajax Porto Pinheiro.
No final da administração Toffoli, o general Pinheiro foi nomeado pelo novo presidente do STJ, Humberto Martins, para ocupar a Secretaria-Geral da Corte. Ou seja, o Tribunal da Cidadania, sob nova direção, reproduz o modelo de militarização na cúpula do Judiciário.
Toffoli revelou-se um presidente despreparado, sem liderança entre os pares e entre juízes de instâncias inferiores, além de autoritário.
No primeiro dia de gestão, eliminou quarentenas e dispositivos regimentais que impediam os conselheiros de usar o CNJ como trampolim para conquistar vagas em tribunais.
Promoveu devassas e suspendeu investigações por meio de decisões monocráticas. Mudou o regimento do CNJ sem debate público, beneficiou um desembargador amigo.
Abusou de regalias do cargo e não foi transparente.
Em março, o Blog revelou que o CNJ faria licitação por pregão eletrônico para contratar o fornecimento de alimentos para as viagens nacionais e internacionais de Dias Toffoli e comitivas em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB).
Nas justificativas, o edital citava que, no cumprimento de sua missão institucional, Toffoli participa de uma série de eventos no Brasil e no exterior, e que essa contratação é necessária uma vez que nos voos da FAB “não são fornecidos alimentos, bebidas e insumos aos usuários”.
O cardápio sugerido previa o fornecimento de medalhão de filé com legumes; cordeiro assado com farofa e purê de abóbora, legumes souté, batata gratinada, farofa de ovos, massa recheada com molho branco, massa recheada com molho ao sugo.
Em plena pandemia, Dias Toffoli divulgou resolução que regulamenta as viagens e diárias no STF. Por razões de segurança, as viagens a serviço realizadas pelo presidente e colegas da corte não serão mais divulgadas de forma detalhada.
Em maio de 2019, este Blog revelou que Toffoli viajou em avião da FAB à ilha de Fernando de Noronha, num final de semana, para proferir palestra, evento que não foi registrado previamente na agenda do presidente no site do STF.
A FAB e a assessoria do STF não informaram a lista dos passageiros que acompanharam o presidente do STF na viagem à ilha, dados solicitados com base na Lei de Acesso à Informação.
Mordomias no STM
Em maio, o Tribunal de Contas da União arquivou investigação sobre a viagem de três ministros do STM (Superior Tribunal Militar) à Grécia, nas férias de julho de 2019, quando participaram de evento privado com despesas pagas pelo tribunal.
Dos gastos totais de R$ 98,7 mil com a viagem dos três ministros, R$ 45,3 mil foram despendidos com diárias, passagens e seguro internacional do presidente da corte, almirante Marcus Vinicius Oliveira dos Santos.
O encontro, segundo a Folha revelou, teve apoio do Bradesco e foi promovido pela Associação Internacional das Justiças Militares (AIJM), uma entidade privada com sede em Florianópolis (SC) criada em 2003.
O evento foi realizado de 3 a 5 de julho de 2019. O STM informou ao TCU que “todos os ministros chegaram em Atenas no dia 2 de julho”. O STM registrou como período da viagem do presidente: ida em 27 de junho e retorno em 17 de julho. Não explicou o que o presidente fez antes de chegar em Atenas.
O STM informou ao TCU que, no dia 6 de julho, o presidente viajou a Barcelona por conta própria, onde gozou férias de 8 a 16 de julho, em casa de parentes, sem onerar o erário. Informou ao TCU que o presidente fez as seguintes escalas: São Paulo x Londres, Londres x Atenas (no retorno, fez o percurso inverso).
O STM argumentou que “a falta de voos diretos impôs a compra de bilhetes com escala, aumentando o tempo da viagem”.
O STM informara à Folha que o presidente “intercalou o evento com seu período de férias no recesso do Judiciário”. Ao TCU, negou interrupção de férias ou intercalação.
Em setembro, o Blog informou que o almirante de Esquadra Álvaro Luiz Pinto, ministro do STM (Superior Tribunal Militar), recebeu R$ 671,9 mil em junho, a título de licença-prêmio na aposentadoria.
O valor surpreendeu magistrados e membros do Ministério Público consultados pelo Blog. O almirante foi um dos três ministros que viajaram à Grécia durante as férias coletivas de julho de 2019.
Aposentado em setembro deste ano, o ministro do STM William de Oliveira Barros recebeu em novembro R$ 699,2 mil (rendimento líquido).
William Barros ocupava uma das três cadeiras reservadas a oficiais-generais da Aeronáutica.
Gastos na pandemia
Em janeiro, o Blog revelou que o Tribunal de Justiça de Pernambuco pagou cerca de R$ 2,5 milhões em diárias a duas comitivas de magistrados e servidores que viajaram aos Estados Unidos.
O tribunal usou um programa criado para premiar juízes e servidores do primeiro grau e incluiu membros da cúpula do tribunal. O presidente e o primeiro vice-presidente viajaram a Nova York com diárias pagas pela corte. Oficiais da PM acompanharam as comitivas.
Um grupo de advogados que atua no TJ-PE foi integrado à caravana de Nova York. Alguns são parentes de desembargadores. No ano anterior, o tribunal promoveu evento semelhante na Alemanha.
Em dezembro, o governo de Pernambuco baixou um decreto –“uma indecorosa manobra contábil”, segundo a Folha– que autorizava o repasse de R$ 60 milhões do tribunal para o Executivo.
No mesmo dia, o dinheiro voltou ao TJ-PE sob a forma de suplementação orçamentária. Na lista de beneficiados pela manobra do governador Paulo Câmara (PSB) está a primeira dama de Pernambuco, a juíza estadual Ana Luiza Câmara.
O então presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, e uma comitiva de dez pessoas visitaram o TJ-PE. Silêncio sobre os gastos do tribunal contestados.
Toffoli trocou presentes com o presidente do tribunal, desembargador Adalberto de Oliveira Melo, e almoçou com o govenador de Pernambuco, Paulo Câmara.
Em março, o Tribunal de Justiça de Pernambuco suspendeu compra de 21 mil kits de lanches, no valor de R$ 224,6 mil, para eventos da Escola Judiciária.
O Ministério Público de Contas questionou a contratação no mesmo dia em que o tribunal instituiu plano de contingenciamento de despesas durante o período de calamidade em razão da pandemia.
Em fevereiro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) manteve o veto ao nepotismo na escolha de juízes eleitorais advogados. Por maioria, o colegiado determinou a devolução ao Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco da lista tríplice de indicados ao cargo de desembargador eleitoral titular.
O TRE-PE teria que substituir o primeiro indicado, advogado Delmiro Campos, filho do desembargador Fausto de Castro Campos, membro do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Delmiro Campos exercia o segundo biênio no cargo de juiz eleitoral substituto no TRE-PE, cujo mandato se encerraria em março de 2021.
Medalhas mineiras
Em março, uma portaria do diretor do foro da Justiça Federal de primeiro grau em Minas Gerais, juiz federal André Prado de Vasconcelos, previu redução de horário para atendimento ao público (iniciativa posteriormente suspensa).
A medida foi justificada como necessidade de reduzir os gastos com energia elétrica, diante da “séria restrição orçamentária”.
Comentário de um juiz mineiro: a Justiça Federal não tem dinheiro para pagar a conta de luz e vai criar um novo tribunal em Belo Horizonte?
Meses depois, o diretor do foro da Justiça Federal em Minas homenageou com medalhas e comendas várias personalidades envolvidas no projeto do TRF-6, sonho acalentado pelo ministro João Otávio de Noronha.
O TRF-6 deverá criar vagas para membros da advocacia, do Ministério Público e da magistratura. Esses segmentos foram representados na distribuição de medalhas,
A homenagem foi programada para acontecer às vésperas do final de mandato de Noronha e Vasconcelos.
Em janeiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou que estava substituindo os cinco veículos de representação, Ford Fusion/2013, por cinco Honda Accord/2020, sedan de luxo importado.
A aquisição foi feita na gestão anterior, sob a presidência do desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças. Essa aquisição gerou críticas de juízes por ter sido realizada em período de restrições orçamentárias.
Os veículos de representação, informou a corte, se destinam ao transporte do presidente, do vice-presidente e do corregedor-geral. Serão usados, também, por ministros que vêm a São Paulo e por magistrados que possam ter a integridade física ameaçada, já que os veículos são blindados.
O TJ-SP informou ainda que vinha desenvolvendo projeto para estimular o uso de aplicativos, prática adotada então por cerca de 10% dos desembargadores e seguida pela administração.
Sob o título “O futuro do Judiciário debatido na orla de Ipanema“, o Blog revelou em março que executivos reunidos num hotel de cinco estrelas, no Rio de Janeiro, ouviram o ministro Luiz Fux falar sobre o descongestionamento do Judiciário com a mediação e conciliação em cartórios extrajudiciais.
O encontro foi promovido pela revista Justiça & Cidadania, com apoio do 15º Cartório Ofício de Notas do Rio de Janeiro.
No lobby (vale o duplo sentido), alguns convidados estavam interessados em saber os rumos do país na gestão do futuro presidente do STF.