TV Justiça e direito à informação

Deve ser negado aos cidadãos o acesso às transmissões dos julgamentos pela TV Justiça? A Folha levantou essa questão na seção Tendências/Debates (2.jan.2021): “O Supremo deveria pôr fim às transmissões ao vivo dos julgamentos da corte?”

O criminalista Augusto de Arruda Botelho divergiu do jurista Lenio Luiz Streck, para quem a TV Justiça contribui para o debate e a formação de uma esfera pública democrática.

“Transparência nunca é demais”, diz Streck.

Botelho já havia deixado transparecer sua visão contra os julgamentos televisionados em debate do qual participei, em junho de 2015, na Faculdade de Direito de São Paulo sobre o tema “Transparência e o acesso à informação” (*).

Como moderador da mesa, ele pediu minha opinião sobre a TV Justiça, antecipando que previa uma manifestação favorável. Defendi as transmissões ao vivo.

Botelho sustentou na Folha que “vivemos preocupante espetacularização da Justiça.”  “Aproximar o Supremo Tribunal Federal do povo é completamente diferente de fazer de nossa mais alta corte de Justiça um reality show”, disse o criminalista.

Ora, se “nós vivemos atualmente níveis perigosamente assustadores da espetacularização de julgamentos”, como diz o criminalista, os responsáveis são os ministros da Suprema Corte, não o canal que transmite o show.

Se o acesso às transmissões diretas não fosse possível, a sociedade desconheceria os bastidores do maior julgamento contra a corrupção, que foi o mensalão.

Desde então, a cobertura jornalística sobre o Judiciário evoluiu, graças à decisão do relator, ministro Joaquim Barbosa, que quebrou o sigilo da ação penal. Ele permitiu aos jornalistas o acesso aos autos e proferiu seus votos em linguagem acessível ao leigo, sem juridiquês.

Os órgãos de imprensa contaram com análises diárias de especialistas da FGV, esclarecendo pontos controvertidos. A transmissão do julgamento pela TV Justiça teve, como lembra Streck, “audiência equiparável à TV aberta”.

Botelho acha que o julgamento transmitido pela TV Justiça “expõe divergências e discussões que podem passar a impressão –muitas vezes acertada– de uma crise na corte”.

Ora, a crise existe, o desgaste do Supremo tem aumentado e os desentendimentos não são novos.

Por que impedir a sociedade de ver Joaquim Barbosa desafiar Gilmar Mendes: “Saia à rua, ministro Gilmar. Saia à rua! Faça o que eu faço. Vossa Excelência não está na rua não. Vossa Excelência está na mídia destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro.”

Por que proibir o cidadão de ver Luís Roberto Barroso afirmar que Gilmar Mendes é “uma pessoa horrível, mistura do mal com o atraso, com pitadas de psicopatia”?

O cidadão também tem o direito de avaliar, assistindo aos julgamentos ao vivo, como se comporta a advocacia. É importante distinguir uma sustentação oral bem fundamentada da mesura para bajular julgadores.

Julgamentos com transmissão simultânea também podem evidenciar a contribuição da advocacia para uma justiça lenta, que não pune poderosos graças a chicanas e processos que se perpetuam.

A transparência ainda evidencia os ministros que abusam de decisões monocráticas e engavetam processos.

Botelho diz que, “para aqueles sem formação jurídica, assistir aos julgamentos muito mais confunde do que ensina”. Streck discorda: “A própria TV Justiça, por seus comentaristas diversos, busca urbanizar a árida ‘província do juridiquês”.

Vetar a transmissão ao vivo dos julgamentos a título de não confundir os que não tem têm formação jurídica, como argumenta Botelho, beira o obscurantismo, uma atitude contrária à difusão dos conhecimentos científicos entre as classes populares.

Botelho menciona a “superexposição dos ministros”, dizendo que alguns “simplesmente não podem frequentar restaurantes, não podem sequer sair às ruas com receio de serem agredidos”. Que sejam punidos os agressores. Não o cidadão que tem direito à informação.

Tenho dúvidas se a “origem de tamanho ódio de parte da população à nossa Suprema Corte”, como define o advogado, está na transmissão ao vivo dos julgamentos.

Em geral, as sessões são monótonas, os votos, prolongados. No lugar do calor dos debates, prevalece a fogueira de vaidades. O cidadão comum não assiste, ou muda de canal. A proibição afetaria os operadores do direito e os interessados na atuação do Judiciário.

P.S. – A desembargadora Kenarik Boujikian, ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), estava no auditório durante o debate da Faculdade de Direito da USP. Ela perguntou o que eu achava da transmissão simultânea de sessões de julgamento.

Emiti minha opinião sem revelar que assistira, semanas antes, a transmissão de um julgamento –no Órgão Especial do TJ-SP– de processo administrativo disciplinar iniciado em 2013 contra ela. O objetivo foi apurar se a magistrada tinha violado dispositivos legais ao apresentar baixa produtividade e atrasar o julgamento de processos. O fato ainda não havia sido noticiado.

Foi a transmissão daquela sessão –marcada pela intransigência de alguns desembargadores– que me convenceu de uma antiga reclamação de Kenarik sobre o machismo no Judiciário:

“O mundo do direito penal ainda é masculino, com tudo o que isso representa, e não só no tribunal”.

Ao assistir a transmissão de várias sessões do Órgão Especial do TJ-SP também pude confirmar o tratamento desrespeitoso da corte com a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, que questionou valores do orçamento e contratos suspeitos firmados pelo tribunal paulista.

(*) O evento foi promovido pelas seguintes entidades: Associação Juízes para a Democracia (AJD), ARTIGO 19, COLAB/USP, Conectas Direitos Humanos, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), XI de Agosto e o curso Gestão de Políticas Públicas da USP.