O feitiço do tempo no Supremo

Sob o título “Retrospectivas no Brasil e ‘O Feitiço do Tempo’”, o artigo a seguir é de autoria de Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada.

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Em tempos de retrospectiva de 2020, num país cujo povo parece ter memória fraca, eventos muito danosos de 2019, e que continuam irradiando seus efeitos em 2020, acabam ficando esquecidos ou tomam outros ares.

Em 2019, foi instaurado o que ficou conhecido como o “Inquérito do Fim do Mundo”, quando incomodado por matérias publicadas na revista eletrônica Crusoé, em 2018, que informavam sobre movimentações atípicas em contas vinculadas às esposas de ministros do Supremo Tribunal Federal, e uma outra, em abril de 2019, porque mencionava documento inserto em processo judicial  com a expressão “o amigo do amigo de meu pai”, o então presidente da Corte, Dias Tofolli, via portaria, instaurou um inquérito como se fosse para apurar crimes cometidos nas dependências daquele tribunal.

Sem distribuição legal e formal, foi encaminhado diretamente ao ministro Alexandre de Moraes, que saiu disparando buscas e apreensões, como a dirigida contra o ex-procurador geral da República porque revelou, em livro recentemente lançado, que um dos ministros lhe despertava seus piores instintos. Não deu em nada…

Em suma, com a composição atual do STF, qualquer menção ou crítica a fatos um tanto quanto estranhos à conduta que se espera de integrantes da mais alta corte do país é convertida em violação da lei, como crimes contra a honra de familiares dos ministros e dos próprios, ou ameaça. E sobre as “condutas estranhas” na órbita daquelas autoridades? Nada! Nem pensar! Afinal, se autoconferiram um poder incontrastável tal como os antigos monarcas e/ou os ditadores atuais do terceiro mundo.

Assim foi instaurado o Inquérito 4781, que começou censurando uma revista eletrônica, vale dizer violando a liberdade de imprensa, que tem assento constitucional, e acabou sendo confundido com outro decorrente das ações e falas de apoiadores do presidente da República.

Tomou ares de coisa importante: inquérito contra os atos antidemocráticos! Passou a ser exaltado pela imprensa antibosolnarista, como ato em defesa da democracia e das instituições! Em suma: um bando de aloprados, que usam as redes sociais para xingar ministros do STF, foram considerados altamente perigosos.

Foi instaurado, e está com o mesmo ministro Alexandre de Moraes, o Inquérito 4828/DF STF. Neste foram proferidas ordens de prisão contra Sara Fernanda Giromini, mais conhecida como Sarah Winter, uma daquelas pessoas que conseguem notoriedade nas redes sociais falando qualquer sandice. Parece que a jovem chamou o ministro Alexandre de Moraes para uma sessão de pugilato e foi levada a sério.

Sem ter foro no STF, está a jovem, que conseguiu chamar a atenção dos mais incautos, submetida a restrições à sua liberdade por ordem emanada de integrante daquele tribunal que é “vítima”, investigador e julgador. E tudo bem! Não vi nenhum “garantista” se insurgir contra tal situação.

Em junho de 2020, o PGR pediu desmembramento do tal inquérito, pois menos de 2% dos investigados teriam foro no STF…

Seria interessante saber o que aconteceu com tais desmembramentos. Tenho cá para mim que não conseguiram progredir não só porque a origem está viciada, mas está difícil converter em crime críticas ainda que grosseiras a ministros do STF que não primam por decisões coerentes e bem fundamentadas, dando a impressão que decidem com o fígado ou comprometidos com os interesses dos que garantiram sua nomeação ao elevado cargo de ministro do STF.

E ficam repetindo que as “instituições funcionam”. Diante de buscas e apreensões e restrições à liberdade, via prisão domiciliar e tornozeleiras, seguem aqueles inquéritos que estariam buscando a fonte de financiamento dos tais atos antidemocráticos. Agora falam em milícias digitais sem parecer saber identificar e/ou investigar essas ações. Então ficam “oxigenando” aqueles procedimentos com requisições “disso e daquilo”. Atirando para todos os lados, quem sabe uma hora acertam?!

A toda evidencia, buscam de alguma forma legitimar a forma genérica de sua instauração, sabido que surgiu sem sujeito e objeto definidos. Falavam em notícias falsas, ou acusações caluniosas sem identificar quais seriam elas e que agentes teriam foro naquele tribunal para legitimar a tramitação dos procedimentos investigativos naquele corte.

Falar ou escrever sobre a repulsa que muitas decisões de alguns ministros do STF provocam no cidadão comum agora tornou-se muito perigoso. Como se defender se for alvo de busca e apreensão e até prisão por decisão de ministro do STF? Tais decisões se tornaram irrecorríveis, vale dizer, não passíveis de revisão por seus pares. Sim, o “cala boca” foi bem entendido pelo Brasil inteiro. E o “cala boca” foi referendado quando os integrantes do STF por maioria consideraram constitucional a instauração do inquérito do fim do mundo e o da Fake News. Eles querem andar de avião ou frequentar bons restaurantes sem  serem importunados!

Não faltou quem não reconhecesse no STF a instância que colocaria limites aos arroubos autoritários do atual presidente da República. Será que é isto mesmo?

Por quanto tempo o anterior presidente do STF deixou milhares de investigações criminais suspensas, porque assim requereu a defesa do senador filho do presidente da República? E por que não é examinada a reclamação do MPE/RJ contra decisão do TJ/RJ, que deu foro especial retroativo ao atual senador da República por crime de peculato, entre outros, cometidos quando era deputado estadual?

O ministro Gilmar Mendes, como relator da reclamação, parece que só tem cabeça para xingar procuradores e ver se incomoda a presidência de seu colega, o ministro Fux. As instituições funcionam bem para quem precisa da morosidade e da sua conivência.

Em recente artigo publicado na Folha de S.Paulo, edição de 5.jan.21, sob o título “Operação Kopenhagen quer salvar Flávio Bolsonaro”, o professor Conrado Hübner Mendes toma frase muito repetida –“as instituições estão funcionando”–, mas questiona: “para quem?” E elenca dezessete instituições, ou agentes delas, que labutam incessantemente para livrar o senador de responder pelos crimes que lhe são imputados em denúncia já apresentada perante o órgão especial do TJ/RJ, muito embora o foro correto seja a primeira instância da Justiça Estadual no Rio de Janeiro.

Na referida Operação Kopenhagen, a atuação do presidente da República junto com a ABIN, GSI, entre outras, já deveria ter provocado iniciativas por parte do PGR, que só tem se ocupado do desmonte das forças tarefas da Lava Jato, bem como até já defendeu o foro retroativo a Flávio Bolsonaro.

Ações para tentar de alguma forma tisnar as investigações, que demonstraram a estranhíssima movimentação financeira do atual senador e de seu assessor-amigo do pai, vale dizer, ações para a obstrução de Justiça, correm soltas sem qualquer reação por parte da PGR e outros órgãos de fiscalização e investigação.

Alguns membros do STF, a instituição que estaria a barrar os arroubos autoritários do presidente da República, andam aos abraços e pizzas com o presidente da República para escolher integrante do STF que venha garantir a maioria necessária, na segunda turma do STF, pródiga em desfazer condenações criminais, já referendadas pelas instâncias antecedentes, por mais que haja provas demonstrativas dos crimes imputados aos mais notáveis políticos, agentes públicos e empresários.

Assim, para a Operação Kopenhagen ser bem sucedida tem que valer o tão famoso acordão cogitado quando a Operação Lava Jato já havia alcançado o alto empresariado e os próceres do partido político que governou o país por 14 anos.

E ainda querem fazer crer que não deixarão acontecer aqui o que Donald Trump conseguiu realizar contra o Congresso Norte Americano. Depois que membros do STF tentaram permitir a reeleição do atual presidente do Senado e do presidente da Câmara dos Deputados, quando é textualmente vedada na Constituição Federal, as instituições brasileiras vão de espasmos em espasmos, pois é o que se pode esperar quando há agentes públicos que se conferem poder incontrastável.

A pandemia da Covid-19 correndo solta, é a desculpa para não haver impeachment do presidente da República. Diga-se, dentro do “acordão” não tem impeachment de presidente da República, de ministros do STF e investigações e ações penais contra membros do Legislativo e/ou Executivo também não tramitam no STF. Impunidade!

Assim vamos vivendo como no filme “O Feitiço do Tempo”: entra ano, sai ano, e a bandidagem continua forte e firme.