Corregedora elogia juiz, mas vislumbra erro judicial
É difícil prever se a absolvição do juiz Roberto Corcioli Filho pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) reduzirá a polêmica sobre a independência dos juízes e os limites para responsabilizar autores de decisões que destoem do texto legal.
Corcioli foi censurado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo sob a acusação de proferir sentenças com “viés ideológico”. O CNJ anulou a censura.
Este é o segundo post que trata da anulação da punição aplicada ao juiz. (*)
A corregedora nacional de Justiça, ministra Maria Thereza de Assis Moura, diz que “no núcleo deste caso, está a forma como a magistratura presta contas à sociedade”.
“Independência e responsabilidade são valores antagônicos que todos os ordenamentos jurídicos se dedicam a equilibrar ao desenhar o Poder Judiciário.”
No caso brasileiro, “a ênfase está na independência, manifestada pela vitaliciedade e secundada por uma quase completa irresponsabilidade quanto ao conteúdo das decisões”.
“A independência não afasta o dever do juiz de agir ‘com base no direito e na prova'”, resumiu.
Ela diz que o CNJ e as corregedorias-gerais de Justiça enfrentam uma avalanche de reclamações disciplinares motivadas por insatisfação com o conteúdo de decisões.
“Trata-se de um fenômeno de múltiplas causas. Mas, em grande parte, é um reflexo da falta de outros mecanismos de responsabilidade judicial”.
A corregedora nacional acompanhou o relator, ministro Emmanoel Pereira, e votou pela anulação da censura.
Fux absolve, mas critica
O julgamento no CNJ foi encerrado com uma controvertida manifestação do presidente do órgão, ministro Luiz Fux.
Sob o argumento de que o presidente “deve somar, e não dividir”, Fux acompanhou a maioria, mas teceu críticas a magistrados com “postura egocêntrica”.
O presidente convidou o colegiado a refletir sobre “o papel pedagógico do CNJ nas questões em que o juiz leva ao extremo a sua convicção”.
“É preciso frear esses impulsos que comprometem a função pedagógica da Justiça”, recomendou. Ou seja, Fux votou com os vencedores e usou argumentos dos conselheiros vencidos.
O presidente disse que ficou muito impressionado com a afirmação de Corcioli de que o tráfico de drogas seria igual a um comércio qualquer. Considerou essa decisão “muito polêmica, teratológica”.
A corregedora nacional fez outra leitura.
Corcioli havia revogado a internação de dois adolescentes acusados de ato infracional análogo ao tráfico de drogas. Argumentou que o tráfico de drogas é semelhante ao comércio de drogas lícitas.
A corregedora entendeu que a analogia foi empregada para ilustrar que o tráfico de drogas “não é, em si, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa”.
“A comparação não é mais do que um ‘obiter dictum‘ [argumento jurídico ou comentário de passagem]”, registrou Maria Thereza. Segundo ela, “a conclusão [de Corcioli] está em conformidade com a jurisprudência”.
Erros judiciais
Ao iniciar sua exposição, Maria Thereza de Assis Moura afastou alguns argumentos desfavoráveis a Corcioli no acórdão condenatório do TJ-SP.
“O magistrado não usa teses pasteurizadas, ignorando as peculiaridades do caso concreto. Pelo contrário, suas decisões são objetivas e claras e analisam os fatos em julgamento. A leitura das decisões deixa transparecer a cultura jurídica do prolator, que bem desenvolve suas teses contramajoritárias, ligando-as aos casos concretos”, afirmou, ao iniciar sua intervenção.
Ao rever os doze casos apreciados pelo TJ-SP, Maria Thereza conclui que Corcioli “exerceu sua independência, ainda que invocando teorias minoritárias”.
Apenas dois casos suscitaram dúvidas sobre o cabimento da via disciplinar. “Vislumbro erros judiciais, visto que o magistrado deixou de levar em consideração circunstâncias que lhe competia considerar de ofício na aplicação da medida socioeducativa e da pena. Com isso, aplicou respostas muito brandas”.
No primeiro caso, ato infracional análogo ao homicídio, Corcioli concedeu semiliberdade a uma adolescente, acusada de matar outra menina por motivo fútil.
Maria Thereza registra que a acusada “esfaqueou três vezes uma vítima desarmada e que não ofereceu reação, segundo reconheceu o próprio magistrado”.
Ainda segundo a corregedora, “não houve provocação imediata –o móvel seria um suposto envolvimento amoroso prévio com o marido da infratora”. Ela entendeu que “a aplicação da internação não só seria legalmente possível, como era a única medida proporcional”.
Estupro de vulnerável
No segundo caso, Corcioli aplicou pena abaixo do mínimo legal a um ex-policial por estupro de vulnerável, substituiu por penas restritivas de direito e concedeu detração em triplo pela prisão no curso do processo.
“O estupro de vulnerável consistiu em colocar uma menina de onze anos no colo, passar a mão nos órgãos genitais e na barriga e tentar beijá-la, dizendo que a amava. O ato foi praticado na presença de outras duas crianças, irmãs menores da vítima”, descreveu a corregedora. Para ela, o réu denotava “um perfil de predador sexual”.
Ainda a corregedora: “O condenado é um ex-policial, que atrairia crianças do bairro para sua casa, sob o pretexto de dar aulas de violão. Outras meninas confirmaram teriam sido abusadas pelo mesmo perpetrador. O condenado também teria ensinado um menino de seis anos a se masturbar.”
O condenado valeu-se de sua condição de adulto para estabelecer uma relação abusiva com a ofendida, ameaçando matar seus pais caso revelasse o ocorrido.
Corcioli considerou exagerado o mínimo cominado pelo tipo penal do estupro de vulnerável, oito anos de reclusão. Entendeu que, por não ter ocorrido penetração, mesmo a pena mínima seria desproporcional. Assim, aplicou a pena mínima, mas a reduziu em dois terços.
Diz a corregedora: “Sem maiores considerações sobre a gravidade da conduta ou o caráter hediondo do delito, considerou viável a substituição da pena por duas restritivas de direito. Aplicar penas abaixo do mínimo legal é bastante heterodoxo. Mesmo diante da incidência de atenuante, a jurisprudência sumulada é em sentido contrário a essa possibilidade”.
“A interpretação do ordenamento jurídico realizada pelo julgador foi heterodoxa, mas estava “dentro de sua liberdade interpretativa”, decidiu a corregedora.
“A regra é que o erro na decisão judicial não leva à aplicação do direito disciplinar. Posiciono esses casos no limite do tolerável. Algumas circunstâncias pesam em favor do magistrado e me levam a concluir que, a despeito da gravidade, não há fundamento disciplinar”, decidiu.
Finalmente, Maria Thereza reconheceu que Corcioli “foi correto na análise da prova, abrindo margem para a crítica à própria decisão. Ambos os casos tinham circunstâncias controversas”.
“O julgador [Corcioli] foi escrupuloso em afastar as teses defensivas e em reconhecer, ao menos na fundamentação, os detalhes que pesavam em desfavor das defesas”. “Fez uma análise escrupulosa da prova, em decisões sujeitas a recurso”. “Nas demais dez decisões mencionadas, não tenho dúvida de que o magistrado agiu dentro de sua margem de interpretação”, ela concluiu.
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