Entidades criticam censura ideológica a juízes no tribunal paulista
Associações de magistrados e entidades de defesa dos direitos humanos criticaram o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao qual atribuíram a prática de “censura ideológica” e perseguição ao juiz Roberto Corcioli Filho.
Elas lamentaram a decisão do juiz de abandonar a Justiça criminal, mesmo com o julgamento no CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 23 de fevereiro, que anulou –por 12 votos a 2– a censura aplicada pelo TJ-SP.
Corcioli foi acusado de proferir decisões com “viés ideológico” e liberar criminosos e menores infratores com base em teses jurídicas que destoam da legislação.
“Por mais que a decisão [anulação da censura pelo CNJ] seja acertada e restitua a segurança jurídica, mostra que a perseguição em si pode ser tão ou mais danosa do que uma eventual condenação final”, avalia o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Formado por criminalistas e cientistas políticos, o instituto promove diálogo entre academia, poder público e a sociedade.
O criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) lembra que o tribunal paulista já foi cobrado por não respeitar decisões das cortes superiores. “Não se vê o TJ-SP instaurando procedimentos disciplinares contra juízes que decretam ou mantêm prisões ilegais, mas o faz contra juízes exemplares que obedecem à Constituição Federal e às leis do país”, diz Leonardo.
A juíza Valdete Souto Severo, presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia) compara o episódio com a tentativa de amordaçamento dos professores e perseguições dentro das escolas e universidades. “É um sinal de alerta grave para o Poder Judiciário e para a democracia”, diz Severo. “O que mais precisamos, em tempos como o presente, é de juízas e juízes com tranquilidade e independência.”
Em maio de 2017, o jurista Dalmo de Abreu Dallari previu que o processo contra Corcioli poderia “afetar com muita gravidade a carreira do magistrado” e transmitir para a opinião pública uma imagem desfavorável de toda a magistratura e do próprio Poder Judiciário.”
Consultado, o Tribunal de Justiça de São Paulo informou que, “em cumprimento à Loman (artigo 36, inciso III), não se manifesta sobre ações em trâmite nem sobre decisões proferidas em quaisquer que sejam as instâncias”.
A seguir, a íntegra das manifestações recebidas.
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“O caso do juiz Corcioli mostra como o Tribunal de Justiça de São Paulo é exemplar em impor sanções àqueles que ousam discordar da sua sanha punitivista. Tradicionalmente o TJ-SP vem confrontando entendimentos das instâncias superiores na esfera criminal. Não à toa São Paulo é, de longe, o estado com a maior população prisional do país com 231 mil presos.” – Marcos Fuchs, diretor da Conectas Direitos Humanos
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“Não é de hoje que o Tribunal de Justiça de São Paulo adota postura de perseguição a juízes que cumprem a lei, mais conhecidos como juízes garantistas. Apesar dessa decisão, o próprio TJ-SP já foi cobrado por tribunais superiores por não respeitar as decisões reiteradas dessas cortes. Justamente por tratar de direito penal de forma demasiado repressiva, para além do que diz a lei e a Constituição.
Não se vê o TJ-SP instaurando procedimentos disciplinares contra juízes que decretam ou mantêm prisões ilegais. Mas o faz contra juízes exemplares que obedecem à Constituição Federal e às leis do país.” – Hugo Leonardo, criminalista, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defe)
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“Nenhum magistrado pode ser penalizado em função de decisões tomadas no curso da atividade jurisdicional, cuja independência é garantida pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica da Magistratura.
Da mesma forma, o juiz tem total liberdade para, em uma decisão de foro íntimo, trocar de área de atuação, sem que isso deponha contra o trabalho anteriormente realizado.” – Renata Gil, presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros)
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“Por um princípio fundamental do sistema de justiça, aquele que discorda do conteúdo de uma decisão, deve dela recorrer às instâncias adequadas. Mesmo que incorreta, a decisão e seu emissor devem ser respeitados, como um corolário de preservação do próprio Poder Judiciário.
Felizmente, o Conselho Nacional de Justiça reestabeleceu mencionado entendimento, reformando a decisão da Corte Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Mais do que o desagravo individual ao magistrado, a decisão é uma garantia à independência judicial, necessária não apenas à classe, mas fundamentalmente a toda a sociedade.
Por mais que a decisão seja acertada e restitua a segurança jurídica, mostra que a perseguição em si pode ser tão ou mais danosa do que uma eventual condenação final.
A abertura de longos e desgastantes processos contra juízes como Roberto Corcioli Filho, um magistrado jovem, independente, técnico e, sobretudo, dotado de uma singular visão humana, desestimula a renovação do pensamento jurídico e a tão urgente reforma do nosso crítico sistema criminal.” – IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)
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“A independência judicial é um dos pilares da democracia. Mais do que um truísmo, essa constatação é o que nos garante que a decisão judicial foi fruto de uma análise profunda do caso, à luz de uma legislação impessoal. Fora disso, tem-se apenas injustiça e opressão”. – Igor Tamasauskas, advogado de defesa do juiz Roberto Corcioli Filho
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“A decisão do CNJ foi extremamente importante, mas é razoável a escolha do colega Corcioli, de sair da área criminal, porque ele foi alvo de um processo doloroso de perseguição pelo conteúdo de suas decisões, a partir de uma lógica que infelizmente não é isolada.
Ao contrário, a recente notícia de tentativa de amordaçamento dos professores, por parte do MEC, secundada por perseguições dentro das escolas e universidades, em razão de posicionamento político, revela que as próprias instituições estão se arvorando em fazer censura ideológica. E desde uma ideologia avessa ao que estabelece a Constituição da República.
Em um quadro de aprofundamento do autoritarismo e de flagelo social como o que nós vivemos, essa preservação, inclusive da sanidade física e emocional, é condição para que o magistrado siga exercendo a sua atividade. E um sinal de alerta grave para o Poder Judiciário e para a democracia brasileira, pois o que mais precisamos, em tempos como o presente, é de juízas e juízes com tranquilidade e independência para fazer valer os direitos fundamentais que viabilizam a sobrevivência em uma realidade tão desigual”. – Valdete Souto Severo, presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia)
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“Para mim, é doloroso ver que o juiz Roberto Corciolli Filho não quer mais atuar na Justiça Criminal, consolidando o que fez e foi levado a fazer durante muito tempo. Saiu da vara em que estava e atua na Vara de Família.
Muito triste. Construir o Judiciário com as bases da Constituição de 1988 não é tarefa fácil”. – Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJ-SP. (*)
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(*) Em 2017, Boujikian também foi absolvida pelo CNJ, que anulou censura aplicada pelo tribunal paulista. Ela foi acusada de violar o princípio da colegialidade, e libertar réus que estavam presos preventivamente por mais tempo do que a pena fixada.