‘Sem um juiz imparcial, estamos perdidos’

Sob o título “De olho no Supremo”, o artigo a seguir é de autoria do advogado criminal Eduardo Muylaert.

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Tem gente a favor e tem gente contra o Supremo Tribunal Federal? É ótimo que as coisas da justiça sejam acompanhadas e discutidas por todos, mas está havendo uma enorme confusão.

Precisamos rever o filme Um Crime Chamado Justiça, de 1971, no original In Nome del Popolo Italiano. Dois personagens se contrapõem. Um magistrado obscuro e correto (Ugo Tognazzi) não se conforma com a impunidade de um magnata (Vittorio Gassman) que burla todas as leis, sempre com proteção das altas esferas do poder.

Quando o poderoso homem de negócios é acusado do homicídio de uma jovem, todas as provas poderiam levar à sua condenação. Só que cai nas mãos do juiz um documento que comprova sua inocência. O diário da própria vítima mostra que o acusado não tinha nada a ver com o homicídio. Cenas finais do filme: a Itália ganha a copa do mundo, o povo festeja loucamente nas ruas, o juiz vislumbra uma fogueira.

O que o juiz do filme vai fazer com o diário recém descoberto? Pode queimá-lo e fazer, por vias tortas, o que considera justo, pondo afinal o magnata na prisão. Ou juntar a prova ao processo, cumprindo a lei. Nessa hipótese, mais uma vez se verá obrigado a absolver o empresário, que escapara tantas vezes antes.

Os fins justificam os meios? E que meios? Vale tudo para alcançar o poder? E para fazer “justiça”? A questão é discutida desde a desde a Antiguidade (Ovídio), ganhou fôlego na Idade Média (Maquiavel) e volta e meia sai dos livros de ética e salta à nossa frente.

A resposta moderna é que existem regras, constituições, códigos, leis que devem ser obedecidos, em benefício de todos. Democracia é o regime em que os fins são buscados através de regras, respeitada a liberdade individual, a liberdade política e, acima de tudo, o direito de defesa.

Ninguém pode ser processado fora do devido processo legal, todos têm direito à ampla defesa e a um julgamento justo e imparcial. Mais fácil de dizer do que de fazer. Quando a questão que hoje eletriza o país veio à discussão, publiquei na Folha, há quase dois anos, um artigo com título “Quando o juiz é suspeito”.

O Supremo demorou, ou seja, sua agenda de julgamentos, o tempo e o modo que escolhe para apreciar as questões, às vezes parece obedecer a critérios estranhos ao direito, o que pode minar sua tão necessária credibilidade.

Lula terá cometido crimes? E Bolsonaro? Independentemente da minha opinião, ou da sua, só um juiz imparcial pode dizer. Houve parcialidade no julgamento de Curitiba? Repito aqui os parâmetros legais da questão. Chamado de suspeito, qualquer ser humano se sente melindrado. Não, porém, se for um magistrado. No direito, essa palavra têm um sentido técnico que nada tem de ofensivo.

O instituto da suspeição serve para proteger o julgador de qualquer dúvida razoável sobre sua necessária isenção. Poupa ainda as partes de qualquer desconfiança. E evita danos à já tão combalida imagem da Justiça.

A imparcialidade “deve decorrer de circunstâncias objetivas, que indiquem isenção de ânimo, equidistância das partes, absoluto desinteresse pessoal na solução do litígio”, definiu uma decisão da Justiça paulista.

É óbvio, e está na lei, que o juiz não pode julgar um processo em que ele mesmo, ou parentes próximos, tenham interesse direto. Também fica impedido de julgar um caso em que tenha funcionado como advogado, promotor ou delegado. Quem atuou na investigação, na defesa ou na acusação já tomou posição. É difícil separar os papéis e mais ainda convencer as pessoas de que essa mudança possa apagar convicções anteriores.

A desejada isenção do juiz decorre do mais elementar bom senso e é garantida por tratados internacionais e pela nossa Constituição. É suspeito, determina a lei processual, o juiz que tenha amizade íntima ou inimizade capital com qualquer das partes, não bastando a mera cordialidade ou animosidade na convivência profissional.

Também é suspeito o juiz “se tiver aconselhado qualquer das partes”. Nessas condições, não oferece garantia de isenção psicológica, ainda que seja moralmente inatacável. Não é da honradez do juiz que se desconfia, mas de sua condição psicológica, observou Hélio Tornaghi.

Com base nesses pressupostos, consagrados e incontestáveis, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai ter, afinal, que decidir questões decorrentes da Lava Jato, que acabou por despertar amores e ódios. Ao pôr a nu inúmeros mecanismos de corrupção e de abusiva ingerência do poder econômico na esfera política, a operação acabou tendo enorme apelo popular, além de inegável influência no processo político e eleitoral.

Na origem, um grupo de jovens juízes e procuradores levou a peito a tarefa transformadora, rompendo barreiras tradicionais. O exemplo veio confessadamente da Operação Mãos Limpas, na Itália, e do processo penal norte-americano.

Ocorre que, no afã de alcançar êxito, a tal força-tarefa, com amplo apoio e sustentação da autoridade judicante, usou maciçamente de mecanismos pouco usuais, como a condução coercitiva, as prisões provisórias e os acordos de delação e leniência. Tudo isso com a busca permanente de apoio da imprensa e da opinião pública, até com a divulgação, nem sempre ortodoxa, de interceptações telefônicas.

Com a recente revelação dos diálogos travados por canais não oficiais, o Supremo agora deve decidir se essas conversas se inserem na normalidade das relações institucionais ou se houve aconselhamento ou envolvimento além do que recomenda a prudência e exige a lei.

O Código de Processo Penal fixa parâmetros para que o julgador, além de ser imparcial, possa parecer imparcial. A ficção da justiça com os olhos vedados tem esse sentido, fazer justiça sem olhar a quem. Mudando de patamar, imaginemos um árbitro de futebol que seja pego aos cochichos com o treinador de um dos times em disputa. A conversa pode até ser inocente, mas a reação da torcida seria arrasadora.

Num grupo de WhatsApp, que discute questões práticas como a troca de canos enferrujados e o uso de máscara pelos funcionários, um vizinho resolveu convocar uma manifestação contra o STF. Foi isso que me motivou a escrever esse artigo. Estamos perdendo a noção?

É preciso lembrar que um dia torcemos pela situação, outro pela oposição, e às vezes não acreditamos em nada. Se um dia formos julgados, vamos precisar de um juiz imparcial. Sem isso, estamos perdidos.