Decisão de Humberto Martins é afronta ao Ministério Público, afirma advogado

Sob o título “Uma afronta ao artigo 18 da Lei Complementar 75/93“, o artigo a seguir é de autoria do advogado Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado.

***

I – O FATO 

Tem sido criticada nos meios jurídicos a medida do presidente do Superior Tribunal de Justiça de abrir investigação para apurar possível cometimento de ilícitos por membros do Ministério Público Federal contra aquele Tribunal. 

Para tanto o presidente do STJ instaurou o Inquérito 1460-DF. 

De fato, a portaria que inaugurou o inquérito registra que ele tem como meta apurar possíveis crimes cometidos por integrantes do MPF contra ministros do STJ. 

A abertura do procedimento foi feita com base nos artigos 21, II, e 58, caput e §1º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça. 

II – AS PRERROGATIVAS DO MEMBRO DO PARQUET 

Essa iniciativa afronta prerrogativas concedidas pelo artigo 18 da Lei Complementar nº 75/93, Lei Orgânica do Ministério Público da União. 

Segundo o artigo 18 da lei que rege o Ministério Público da União (MPU), cabe apenas ao procurador-geral da República procedimentos que investiguem a atuação de membros do MPU.

“Quando, no curso de investigação, houver indício da prática de infração penal por membro do Ministério Público da União, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá imediatamente os autos ao Procurador-Geral da República, que designará membro do  Ministério Público para prosseguimento da apuração do fato”.  

Trata-se de prerrogativa dada aos membros do Ministério Público da União. 

Sobre a matéria ensinou Emerson Garcia (“Ministério Público, Organização, Atribuições e Regime Jurídico”. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2008, p. 510): 

“Como se depreende pelo art. 41, parágrafo único, da Lei n.º 8.625/1993, os membros do Ministério Público não poderão ser indiciados em inquérito policial. Havendo, no curso de uma investigação, indícios da prática de infração penal por membro do Ministério Público, deverá a autoridade competente, civil ou militar, remeter os autos imediatamente ao Procurador-Geral de Justiça, a quem competirá dar prosseguimento à apuração.

Idêntico procedimento deve ser adotado em se tratando não de investigação de determinado fato, cuja autoria é ignorada ou imputada a terceiros, mas de notitia criminis que impute a prática de crimes a tais agentes.”

Para evitar a tentativa de captura da instituição ministerial por pressões investigatórias externas, a Lei Complementar decidiu confiar ao próprio chefe da instituição (PGR ou PGJ, conforme o caso) a instauração do inquérito, que não será conduzido por policial ou por juiz de qualquer hierarquia, mas sim por membro do MP indicado pelo próprio chefe da instituição.

Foram reconhecidos aos membros do Ministério Público as mesmas garantias dos magistrados: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.

No entendimento de Hugo Nigro Mazzilli (“O Ministério Público na Constituição de 1988”, 1989, pág. 79), são predicamentos necessários à maior independência funcional e que já tinham sido, em maior ou menor extensão, conquistados nos Ministérios Públicos estaduais anteriormente à Constituição de 1988.

As garantias são distintas das prerrogativas.

As prerrogativas ligam-se ao cargo; já as garantias, são da pessoa, do órgão, do oficio ou da instituição.

As prerrogativas não são privilégios.

São atributos do órgão ou do agente público, inerentes ao cargo ou à função que desempenha na estrutura da organização administrativa, como revelou Hely Lopes Meirelles(“Justitia”, 123:188, n. 17). As prerrogativas dizem respeito ao cargo enquanto as garantias, por outro lado, são da pessoa, do órgão, do oficio, da instituição.

As prerrogativas funcionais erigem-se em direito subjetivo de seu titular, passível de proteção por via judicial, quando negadas ou desrespeitadas por qualquer autoridade. 

Na lição de Geraldo Ataliba (RDP, 68:146, n. 21), as prerrogativas pertencem à própria instituição e não ao indivíduo, já que é dada para o cumprimento dos misteres que a lei conferiu ao seu titular. 

Afinal, como se tem das lições de Carlos Maximiliano (“Hermenêutica e aplicação do direito”), as normas de ordem pública têm aplicação restrita. Data vênia uma norma do Regimento Interno de Tribunal não pode superar uma lei complementar. 

III – A LEI COMPLEMENTAR É NORMATIVAMENTE SUPERIOR A REGIMENTO INTERNO DE TRIBUNAL EM MATÉRIA DE PROCESSO 

Afonso Arinos de Melo Franco fazia distinção entre “leis complementares por destino” (as que dizem respeito aos órgãos do Estado) e “leis complementares por origem” (as que dizem respeito aos súditos do Estado), admitindo as “chamadas leis orgânicas, que se destinam a estabelecer o mecanismo administrativo do Estado” (“As Leis Complementares na Constituição”, pág. 9), e integram as leis complementares”.

João Mangueira, não obstante, distinguia as leis complementares das orgânicas, embora reconhecesse que estas eram modalidades daquela. Definia as primeiras, as leis complementares, como as que “compõem, complementam, aperfeiçoam e aumentam a lei que a Constituição determina seja feita” e as segundas, as leis orgânicas, as que se referem a órgãos ou serviços do Estado (“Parecer como relator geral da Comissão Mista de Leis Complementares”, in “Jornal do Comércio”, Rio, 23.9.1947).

Para Sacha Calmon Navarro Coêlho (“Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário”, pág. 144), a lei complementar é veículo legislativo e norma geral de conteúdo normativo (forma)  e ainda norma geral (conteúdo).

Em síntese na matéria, José Souto Maior Borges (“Lei Complementar Tributária”, 1975, pág. 72) ainda estudando a matéria sob o pálio da norma constitucional anterior, disse:

“Sem que sejam conjugados dois requisitos constitucionais –quorum especial e qualificado mais o âmbito material de competência legislativa próprio– não há lei complementar no direito constitucional brasileiro.

Haverá quanto muito, lei ordinária da União(observância de quorum e inobservância do âmbito material de validade da lei complementar, contido não obstante o ato legislativo dentro do campo da lei ordinária da União) ou lei complementar material viciada por inconstitucionalidade forma ou extrínseca (inobservância do quorum e observância do âmbito material de cabimento da lei complementar).

Donde se conclui que, extrapolando o seu campo material próprio – se observado no entanto o campo de atribuições legislativas da União – a lei não será formalmente complementar, mas ordinária. Inobservado, ao contrário, o quorum especial e qualificado, mesmo se respeitada a competência material da União, a lei complementar será inconstitucional”. 

A Lei Complementar é o ato legislativo para cuja elaboração a Constituição Federal exige o quorum especial previsto à luz do regime jurídico formal estabelecido pela Constituição no disciplinamento dessas competências legislativas e apenas sob esse ângulo, o quorum exigido na Constituição – requisitos de existência e validade – fornece a diferença especifica da lei complementar em contraste não só com a lei ordinária, mas ainda com as outras categorias legislativas.

É esse quorum atributivo que, ao somar-se ao gênero “atos normativos” forma a espécie que distingue a lei complementar das outras espécies daquele mesmo gênero. Mas isso não basta, porque a Constituição o associa, como disse Souto Maior Borges (obra citada), à inclinável exigência de inserção do ato legislativo num âmbito material de validade próprio.

Por sua vez, a norma constante de regime interno é norma infralegal. 

Lembro José Frederico Marques (“1990 – Instituições de Direito Processual Civil” – volume I – p. 186), que ao tratar do mesmo tema assevera que “o regimento é lei em sentido material, embora não o seja em sentido formal. Na hierarquia das fontes normativa do Direito, ele se situa abaixo da lei, porquanto deve dar-lhe execução”.

Em matéria processual prevalece a lei, no que tange ao funcionamento dos tribunais o regimento interno prepondera. 

Tem-se a lição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery em “Código de Processo Civil Comentado”, 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006), para quem as atribuições dos regimentos são meramente administrativas, sendo-lhes defeso disciplinar o direito das partes, pois tal atribuição cabe ao corpo Legislativo, verbis

(…) A CF 22, I confere ao Poder Legislativo da União (Congresso Nacional) competência exclusiva para legislar em matéria de direito processual, como é o caso dos recursos. Há competência concorrente da União e dos Estados, ou seja, do Poder Legislativo da União (Congresso Nacional) e dos Estados (Assembleia Legislativa de Deputados Estaduais), para legislarem sobre procedimento em matéria processual (CF 24 XI). Regimento interno de tribunal tem natureza jurídica de normas administrativas – e não de lei -, que regula o procedimento interna corporis do tribunal, não podendo criar direitos nem obrigações para os jurisdicionados (CF 5º II). 

Portanto, no conflito entre uma lei de processo e um norma regimental, vigora a lei de processo, que, para o caso, é a Lei Complementar nº 75/93, no seu artigo 18, parágrafo único, cuja literalidade aqui já foi trazida.

IV – A EVIDENTE INCONSTITUCIONALIDADE DA PROVIDÊNCIA TOMADA 

A legitimidade do Ministério Público para a colheita de elementos probatórios essenciais à formação de sua opinio delicti decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 75/1993 (art. 129, incisos VI e VIII, da Constituição da República, e art. 8.º, incisos V e VII, da LC n.º 75/1993).

Para o caso, a prova deve ser colhida sob a supervisão do procurador-geral da República, chefe do Ministério Público da União, ou por outro membro da instituição ministerial a quem ele delegar poderes para tal, por portaria.  

E não poderia ser diferente.

Considerando que o membro do Ministério Público é responsável pelo controle externo da atividade policial, não se mostraria recomendável atribuir à autoridade policial a investigação de seu controlador, de modo que deve prevalecer a expressa opção legislativa que, até mesmo em razão das prerrogativas institucionais dos agentes ministeriais, potencializa a independência de apuração de tal natureza. 

A adoção da medida tomada afronta a lei e ainda o império da razoabilidade. 

Assim, que dizer do caso de uma autoridade policial investigar um membro do Parquet, dirigindo-se a um presidente de tribunal, sem que o chefe da instituição ministerial nada saiba? Isso é um acinte à Constituição que dá ao Ministério Público, em seu artigo 129 da CF, poderes de investigação e instauração da ação penal pública. 

O procurador designado pelo procurador-geral da República para acompanhar a investigação é o promotor natural, sendo a ele, e não a outro, dado a acompanhar tais investigações para que nela se colham provas quanto a autoria e materialidade delituosa, se for o caso. 

É absolutamente inconstitucional, pois, a providência tomada e historiada acima pelo presidente do STJ, com o devido respeito. 

Tudo isso sem falar numa gritante e afrontosa agressão ao princípio acusatório traçado pela Constituição Federal. Juiz não investiga, julga.