Criminalista Eduardo Muylaert: ‘Quem tem medo da Lei de Segurança Nacional?’

O artigo a seguir é de autoria de Eduardo Muylaert, advogado criminal.

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Por que tanto medo de acabar com a Lei de Segurança Nacional? A Folha faz cem anos, a redemocratização 35, e algumas coisas não mudam.

A LSN tem sido usada tanto para atemorizar professores universitários de esquerda, como agitadores desbocados de direita. Serviu até para prender um deputado sem noção que abusou da liberdade de expressão e merecia ser cassado por seus pares. E agora vem ameaçar o comunicador Felipe Neto. Logo poderá estar sendo usada para tentar calar a imprensa. Onde isso vai parar?

A LSN é de 1983, governo João Figueiredo. Era o fim da ditadura e o sistema quis uma lei menos dura que as anteriores, de 1967 e de 1969, até para tentar garantir sua sobrevida. Nunca imaginaram que ela ia durar tanto e, de repente, quase quarenta anos depois, voltar à ordem do dia.

Não é razoável tratar uma suposta ofensa, um eventual abuso da liberdade de expressão, como caso de segurança nacional. A lei que continua em vigor pune com pena de até quatro anos a difamação contra chefes de Poder. É razoável sair do Código Penal e invocar a LSN para acusar alguém por suposta ofensa verbal?

O Supremo, em decisão histórica, acabou com dispositivos repressivos da Lei de Imprensa, considerando que ofendiam a Constituição ao restringir a liberdade de informação, mas também de opinião. Em omissão não menos histórica, entretanto, a Suprema Corte esqueceu de apagar a LSN de nosso arsenal repressivo.

O arcabouço da lei e seu espírito são filhos diretos da doutrina de segurança nacional que dominou o período autoritário e que conviveu com exílios, prisões, torturas e perseguições.

Quando, em 1987, o ministro da Justiça Paulo Brossard encomendou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) um projeto de lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, recomendou expressamente que se fugisse da ideologia da lei que continua agredindo a Constituição de 1988.

Os saudosos Evaristo de Moraes e René Dotti, dois dos maiores juristas de nosso país, integravam o CNPCP por mim presidido na época. Insistiram muito para que o projeto fosse o mais objetivo possível, descrevendo condutas efetivas e de fato.  Procuramos, unanimemente, tipificar figuras concretas, e não meras cogitações.

Houve críticas, claro, mas o debate sempre enriquece as propostas. E qualquer lei de defesa da democracia seria melhor do que a questionada LSN.

Era tempo de Constituinte, e o presidente Sarney insinuava que “não tinha cacife para desafiar a cúpula militar”, como registrado na Folha pelo saudoso Clóvis Rossi. Até hoje muitas omissões usam como justificativa um suposto veto militar, que na maioria das vezes nem existe.

Em tese, a LSN visa proteger a integridade do território e a soberania da nação, o regime democrático e o estado de direito. Tudo isso merece efetiva proteção. É necessário combater a sedição, a traição, o golpe. Por que falharam então todas as tentativas de substituir a LSN por uma verdadeira e efetiva Lei de Defesa do Estado Democrático?

No governo Fernando Henrique, o titular da Justiça, Miguel Reale Júnior, montou outra comissão com mesmo objetivo. Dela fazia parte o hoje ministro do STF Luís Roberto Barroso. O novo projeto não teve melhor sorte, naufragou como tantos outros.

Fala-se hoje de várias proposições em tramitação nas duas casas do Congresso, mas há notícias de que a maior preocupação seria a de preservar as prerrogativas dos parlamentares.

A perplexidade é que, embora a LSN não tenha sido aplicada nos três últimos anos do governo militar, ela voltou a ser usada pelo atual titular da Justiça para determinar instauração de inquéritos. Mais grave, foi usada pelo STF como justificativa para prisão em flagrante de parlamentar que, em tese, extrapolou limites de liberdade de expressão.

Nesse quadro, como seria possível irmos agora ao Supremo para arguir inconstitucionalidade, ainda que de um só artigo, da Lei de Segurança Nacional?

Será confortável manter o bicho papão no armário para facilitar a vida de algumas autoridades em caso de conveniência, ou está na hora de mudar a lei? Muitos setores dizem querer seu fim, mas possivelmente têm medo de uma Lei de Defesa do Estado Democrático com mais legitimidade e que seja mais difícil de contestar.

Até quando vai prevalecer o oportunismo de governos e parlamentares no trato de uma questão de tal gravidade? Quando vamos acabar de vez com as sobras da ditadura e lutar pela defesa objetiva da nossa sempre ameaçada democracia?