Desembargador Antonio Malheiros distribuiu justiça e afeto aos excluídos
“Magistrado tem de sentir o gosto, o cheiro dos problemas antes de decidir. Tem de ir à rua, conhecer sua comunidade. Não pode ficar encastelado, imaginando que lida apenas com papel.”
Assim o desembargador Antonio Carlos Malheiros, do Tribunal de Justiça de São Paulo, via o papel do juiz, conforme revelou, dez anos atrás, a estudantes e operadores de direito em Olímpia (a 436 quilômetros da capital).
“Malha”, como era chamado pelos amigos, morreu aos 70 anos, na madrugada desta quarta-feira (17). Ele não ficava encastelado.
Desde os tempos de estudante dedicou-se ao trabalho voluntário nas ruas do centro de São Paulo. Nos últimos anos, atuava no resgate de dependentes químicos na região da Cracolândia.
Aos estudantes de Olímpia, disse que costumava andar sozinho, quase sempre sem avisar a polícia militar do Tribunal de Justiça: “Não tenho medo de morrer, me mandam até torpedos de ameaças de morte, mas não vou desistir, mesmo que já velho, meio cansado, de minha missão”.
A eles contou que, nos final dos anos 1970, ainda jovem advogado, chegou a dormir num banco da Praça da Sé.
“Estava cansado demais, depois de um dia de trabalho. Cochilei por uma hora no meio de um grupo de 15 adolescentes. Acordei sobressaltado, com o preconceito gritando.” Conferiu, ninguém mexera em seus bolsos. “Os 15 garotos deitavam num círculo em volta do banco. Quando me despedi, disseram que era para me proteger. Senti vergonha e, ali, caiu parte do preconceito”, disse, conforme registro no Diário de Olímpia.
O site Migalhas revela que, em 2016, ao receber na Câmara Municipal a Medalha Anchieta e Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, Malheiros afirmou que dividia o prêmio com todos a quem ajudou, “com destaque para aquele menino de 15 anos, da Praça da República, que hoje é professor na Getúlio Vargas”.
O desembargador integrava a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Viva e Deixe Viver, que ajudou a fundar, onde contava histórias para crianças em hospitais, vestido de palhaço – o “Totó”.
Criada em 1997, a entidade é formada por mais de mil voluntários – em sua maioria contadores de histórias – que prestam seu serviço voluntário gratuitamente em hospitais de São Paulo e de outros Estados.
Malheiros morreu numa quarta-feira, dia de sessão do Órgão Especial. O site do TJ-SP registra as várias homenagens e depoimentos. “O presidente da Corte, desembargador Geraldo Francisco Pinheiro Franco, inicialmente pediu um minuto de silêncio em homenagem a Antonio Carlos Malheiros e às milhares de vítimas da pandemia”.
“Era um homem gentil, alegre, sempre preocupado com o próximo, sempre com uma boa palavra”, afirmou o presidente. “Traço característico natural de sua personalidade, espécie de empatia natural, era ver em todos os homens, ainda que os mais empedernidos nos descaminhos da vida, a feição particular da bondade”, disse. “Sentiremos muito sua falta.”
Pró-reitor de Cultura e Relações Comunitárias da PUC-SP, Malheiros participou, em 2017, dos entendimentos que resultaram no convênio de cooperação entre a Escola Paulista da Magistratura (EPM) e a Fundação São Paulo (Fundasp), mantenedora da PUC-SP.
Pelo convênio, magistrados do TJ-SP passariam a fazer cursos de mestrado e doutorado na PUC-SP.
Família com base no afeto
Em Olímpia, Malheiros havia proferido palestra em seminário sobre “Homoafetividade e União Estável e a Responsabilidade Civil nos Litígios Familiares”, um tema sobre o qual deixou grande contribuição.
“Malheiros trouxe, de fato, à justiça brasileira bagagem de conhecimentos de pesquisador arguto e escritor corajoso, que firmou a definição da família com base no afeto, superando uma longa tradição que a vinculava apenas a questões de ordem material, se não apenas patrimonial”, afirma o desembargador Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.
“Isso contribuiu para a superação de preconceitos e barreiras de ordem ideológica desligadas da função social do direito, o que culminou com decisões importantes da justiça, assim como com a implantação de conceito mais humano da união estável e do casamento, assim como da prática das relações familiares”, diz o presidente da APD.
Malheiros era um defensor da liberdade de expressão dos magistrados. Em artigo publicado neste Blog em 2014, intitulado “Mordaça em juiz e herança da ditadura“, o desembargador Edison Vicentini Barroso, do TJ-SP, transcreve duas citações de Malheiros:
– “Não é a liberdade que faz mal aos homens. É a sua falta que deforma as sociedades humanas.”
– “A liberdade de expressão é atributo indissociável do estatuto da dignidade humana. Privar juízes de exercer esse direito é mutilá-los em sua própria humanidade e relegá-los a uma condição sub-humana.”
A desembargadora aposentada do TJ-SP Kenarik Boujikian escreveu nesta quarta-feira em sua página no Facebook:
“Hoje perdi um grande amigo, Antonio Carlos Malheiros.
Hoje o TJSP perde um grande magistrado.
Hoje a humanidade perde um grande ser.
Excessivamente generoso, solidário, humano.
Excessivamente humano.
Um legado pra seguir.
Saudades”.
Malheiros era um magistrado independente, não se curvava à maioria.
Em 2015, o TJ-SP abriu processo disciplinar contra Boujikian para apurar se a magistrada havia violado dispositivos legais ao apresentar baixa produtividade e atrasar o julgamento de processos quando atuou como substituta na corte, entre 2012 e 2014. Na época, ela enfrentava problemas de saúde e pessoais.
Ele deve ter percebido que o objetivo seria “censurar” Kenarik (no sentido da pena administrativa, não pela produtividade em si).
Malheiros divergiu da maioria e fez declaração de voto pela suspensão do processo:
“Note-se que a magistrada, independente passar por problemas de saúde e ordem pessoal, no primeiro semestre deste ano, teve sua produtividade aumentada”.
Também votaram pela suspensão do julgamento os desembargadores Péricles Piza, João Carlos Saletti, Roberto Mortari, Paulo Dimas Mascaretti, Tristão Ribeiro, Antonio Carlos Villen e Damião Cogan (vencidos).
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A pedido do Blog, o desembargador aposentado Caetano Lagrasta escreveu o texto abaixo em memória de seu amigo “Malha”.
Estrepolias
Conheci meu amigo Malheiros, lá pelo meio dos anos 80, quando ele advogado e eu juiz substituto nas 7ª. e 8ª. Varas da Família; continuamos nossa amizade com os espaços impostos pela vida, até um pouco antes de sua despedida.
Éramos um grupo, a partir de Erasmo Novaes França, Belisário Santos Jr., e muitos outros confrades de tertúlias humanísticas e jurídicas, as primeiras sempre regadas a bons vinhos e em regabofes respeitosos, muitas vezes ao som do piano de Erasmo.
Difícil pegar Malheiros sem compromissos, dava-se um jeito e acabávamos naquelas conversas rasgadas e quase ao despertar do dia seguinte.
Quero relembrar o primeiro caso de Família em que nos encontramos, cada um na sua função e depois de longa colheita de testemunhos, prometi a sentença para o final do dia, quando nele já quase estávamos: Malheiros esperou no corredor, em conversa com “seu” Antonio Corigliano nosso amigo e o melhor Porteiro de Auditórios com que fomos premiados.
Pois bem, convidei-o a entrar e entreguei-lhe a sentença. Ele vencera e fui vendo em sua expressão os percalços da frase dúbia e da vitória final.
Terminou de ler, agradeceu e já ia saindo, quando o adverti: “Doutor, agora, por favor, tome ciência”.
Durante anos ele me lembrava desta e de outras artimanhas.
Por fim, faço questão de recordar de nossa caminhada o convite que me formulou para ser membro da Comissão de Justiça e Paz, quando sob as ordens de D. Paulo Evaristo Arns, promovemos algumas estrepolias e… chegamos novamente a este barranco tenebroso.