O silêncio de Dias Toffoli

Enquanto o país acompanha apreensivo a grave crise institucional, é estranho o silêncio do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli. Ao leitor atento não escapou o primeiro presságio da militarização do país quando, em 1º de outubro de 2018,  o ministro pontificou:

“Hoje, não me refiro nem mais a golpe nem a revolução. Me refiro a movimento de 1964”.

Tivesse a clarividência que tentava aparentar, seria valioso saber hoje sua previsão: se o presidente Jair Bolsonaro ensaiou um golpe ou se estaríamos assistindo apenas a um movimento nas peças do xadrez político. (*)

Toffoli já chegou a afirmar que nunca viu da parte de Bolsonaro e de seus ministros “nenhuma atitude contra a democracia”.

O ministro abriu as portas do Judiciário aos militares e ajudou a pavimentar a eleição do capitão quando  convidou o general Fernando Azevedo, ex-chefe do Estado Maior do Exército e depois ministro da Defesa, para assessorá-lo em seu gabinete no Supremo.

Acuado, perdendo apoio político e popular com sua política genocida na pandemia, Bolsonaro demitiu nesta segunda-feira (29) o ministro Fernando Azevedo.

Como reação, no dia seguinte os três comandantes das Forças Armadas pediram demissão conjunta: Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha), Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica).

Segundo informa Igor Gielow, na Folha, “Bolsonaro demitiu sumariamente o general Fernando Azevedo da Defesa porque não via o apoio a ideias intervencionistas e até golpistas entre os fardados da ativa –no governo há ministro de sobra oriundo das Forças”.

O nome de Azevedo foi indicado a Toffoli pelo então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, considerado um militar bolsonarista e a quem o capitão agradeceu publicamente pela eleição.

Quando terminou sua gestão na presidência do STF, Toffoli indicou ao ministro Humberto Martins, que assumiu a presidência do Superior Tribunal de Justiça, o general Ajax Porto Pinheiro, que foi nomeado secretário-geral do Tribunal da Cidadania. O general Pinheiro foi o substituto de Azevedo no STF.

Toffoli pretendia ser o intermediário entre a toga e a farda. Essa intenção foi frustrada pela ação de Bolsonaro e pela omissão de Azevedo, que não reagiu às hostilidades ao STF estimuladas pelo presidente.

Embora tenha admitido o constrangimento, o ministro da Defesa acompanhou Bolsonaro ao sobrevoar de helicóptero uma manifestação contra o Judiciário; participou de uma visita ao STF, fora de agenda, de Bolsonaro e empresários, tentativa de pressionar os ministros da corte.

Em abril de 2020, durante reunião ministerial, Azevedo e outros generais silenciaram quando o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, defendeu a prisão de ministros do Supremo.

Afora isso, há dúvidas se Toffoli teria êxito como mediador e conciliador entre os Três Poderes, diante do estilo espaçoso de Gilmar Mendes, que, por exemplo, atropela o presidente do STF, Luiz Fux, e os pares e se encontra com Bolsonaro fora da agenda oficial.

Militares em campanha

As articulações de militares para eleger Bolsonaro devem ter sido anteriores às dúvidas de Toffoli sobre se houve “golpe ou movimento em 64”.

Como revelou a revista Época, os generais Fernando Azevedo, Edson Pujol, Ajax Pinheiro, Carlos Alberto Santos Cruz e Augusto Heleno são ex-integrantes da missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti.

Azevedo integrou “um grupo de suporte” à chapa de Bolsonaro e do general da reserva Antônio Hamilton Mourão, então candidatos a presidente e vice-presidente da República.  “Participou de uma reunião que formulou propostas para a campanha e ofereceu um almoço, em sua casa, ao vice da chapa”, informou a revista.

O convite de Toffoli ao general da reserva Fernando Azevedo para assessorá-lo não provocou reações públicas dos ministros do STF.

O então decano, Celso de Mello, foi o único a criticar a presença de um general no Supremo. O ex-chefe do Estado-Maior do Exército foi introduzido formalmente aos ministros durante uma sessão administrativa, encontro que não costuma ter divulgação pública.

Na ocasião, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias considerou a escolha “uma má ideia” de Toffoli.

“O Supremo jamais precisou de uma assessoria militar. A escolha fica mal para o STF, pois é absolutamente desnecessária”, Dias afirmou à Folha.

Tripudiar sobre a história

Em seminário no auditório da Folha, a desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian disse que “um ministro do Supremo Tribunal Federal chamar de movimento um golpe reconhecido historicamente é tripudiar sobre a história brasileira”.

“De algum modo, é desrespeitar todas as nossas vítimas”, afirmou a magistrada.

Toffoli, que nasceu três anos depois do golpe de 64, foi duramente criticado por sua reinterpretação daquele período de trevas.

“O ministro, pela ignorância crassa dos fatos, deve desculpas aos familiares dos assassinados, presos, torturados e desaparecidos.

Mas essa ignorância ainda é mais grave porque revela um total desconhecimento do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), escrito a partir dos depoimentos de centenas de vítimas e familiares, bem como do registro dos autores mais qualificados da historiografia nacional”, escreveram na Folha os ex-integrantes da CNV José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso.

Como este Blog afirmou, “o convite ao general Fernando Azevedo aconteceu num cenário conturbado pela campanha eleitoral de um candidato à Presidência da República que instigava membros da corporação militar, elogiava torturadores e pregava o armamento da população”.

Questionado naquela ocasião sobre o simbolismo da presença de um militar no STF, Toffoli disse, via assessoria, que “a escolha obedeceu a critérios objetivos de habilidades e competências”.

Mais adiante, em novo pedido de esclarecimentos sobre os motivos do convite, a assessoria de imprensa do STF respondeu: “O ministro Dias Toffoli pôde constatar a qualidade do serviço prestado por oficiais das Forças Armadas quando da passagem pelo Congresso Nacional, Subchefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República e Advocacia-Geral da União. Competência, disciplina, lealdade e dedicação estão entre as qualidades verificadas pelo ministro.”

Os mais próximos de Toffoli também lembraram que aquela não foi a primeira vez que o ministro trabalhou com um militar, pois “aprecia a disciplina, o comprometimento, a lealdade e a hierarquia”.

Em 2007, então Advogado Geral da União, Toffoli nomeou o general Romeu Costa Ribeiro Bastos secretário-geral de administração da AGU. Casado com Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, que presidiu o Superior Tribunal Militar, Bastos atuou na Secretaria de Administração da Casa Civil da Presidência da República no governo Lula.

Em março de 2019, este Blog previu:

“As anotações dos historiadores deverão registrar a contribuição do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, para o atual clima de incertezas.

A observação continua valendo, confirmada por fatos que se agravaram. Sua gestão ficará marcada pelo respaldo ao retrocesso institucional ocorrido no país.

Em dois anos, a democracia recuou décadas.”

(*) Nesta quarta-feira (31), por intermédio da assessoria de imprensa do STF, o Blog manifestou o interesse em publicar a avaliação do ministro Dias Toffoli sobre os fatos recentes. O espaço continua à disposição do ministro que, registre-se, sempre respeitou o direito de crítica deste editor.