Polêmica sobre independência de juízes volta a julgamento no tribunal paulista

Com votos divergentes, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) interrompeu julgamento envolvendo, mais uma vez, a polêmica questão sobre a independência dos juízes e o poder disciplinar das corregedorias.

Na sessão do Órgão Especial no último dia 31/3, um pedido de vista do presidente Geraldo Pinheiro Franco adiou julgamento para decidir sobre a instauração de Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra o juiz Marcílio Moreira de Castro, de Araçatuba (SP).

Em plantões judiciais, o magistrado determinou o relaxamento de prisões efetuadas por policiais militares em casos com indícios de tráfico de entorpecentes.

Após o corregedor-geral Ricardo Anafe votar pelo acolhimento da defesa prévia do magistrado, e arquivamento dos autos, quatro desembargadores votaram pela instauração do processo disciplinar: Xavier de Aquino, Alex Zilenovski, Soares Levada e Moreira Viegas.

Ao julgar caso semelhante em fevereiro último, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) absolveu o juiz Roberto Luiz Corcioli Filho da pena de censura imposta pelo TJ-SP. Por 12 votos a 2, o colegiado anulou a punição, pois considerou que as decisões de Corcioli estavam devidamente motivadas e fundamentadas.

A decisão do CNJ no caso Corcioli deve ter influído no voto de Anafe pelo recebimento da defesa prévia do juiz de Araçatuba.

Naquela ocasião, o TJ-SP foi alvo de duras críticas de juristas, membros do CNJ e entidades da magistratura. As reações do tribunal paulista a julgamentos do CNJ e a alegada desobediência do TJ-SP a decisões das cortes superiores geraram troca de acusações nos últimos meses. Essas manifestações divergentes podem ressurgir, pois alguns desembargadores mantêm o entendimento de que o tribunal deve reafirmar sua soberania.

São autores das representações contra o juiz Marcílio Castro o deputado federal Guilherme Derrite, (PP-SP), ex-comandante da Rota, o senador Major Olímpio (PSL-SP), oficial PM da reserva (que morreu no último dia 18 de março), e o deputado estadual Frederico Braun D’Avila (PSL). Antes de ingressarem na vida pública, os parlamentares eram servidores da Segurança Pública.

A decisão questionada diz respeito ao relaxamento da prisão dos ocupantes de um Fiat Uno Mille 2008 por agentes da Polícia Militar Rodoviária que encontraram cerca de 133kg de maconha em seu interior. Os policiais justificaram a busca em razão de “certo grau de nervosismo” que eles teriam apresentado na presença dos militares, motivo considerado inidôneo pelo juiz.

Segundo os autores da representação, “o magistrado proferiu decisão dissonante da realidade jurídica pátria, calcada em convicções pessoais e com alto grau de ativismo judicial”.

Derrite afirmou que o juiz concedeu liberdade provisória a um homem e duas mulheres, em caso com “fortíssimos indícios de tráfico interestadual de entorpecentes”. O senador Major Olímpio afirmou que a ação dos policiais “se deu em fiel cumprimento de todos os procedimentos policiais militares”.

Anafe vislumbrou “potencial caracterização de infração disciplinar, consistente em excesso aos limites impostos à atividade interpretativa a fim de prevalecer entendimento ideológico do magistrado com indícios, por consequência, de desvio de finalidade, afronta aos deveres de imparcialidade e prudência, bem como de atuação de natureza discriminatória”.

Advogados negam infração

Nos memoriais, os defensores de Marcílio Castro –advogados Igor Sant’Anna Tamasauskas e Débora Cunha Rodrigues– sustentam que “não há quaisquer indícios de condutas que possam vir a ser caracterizadas como infração funcional passível de sanção disciplinar”.

Negam que tenha havido parcialidade, negligência, imprudência ou entendimento ideológico que justificasse a instauração de processo disciplinar.

A defesa afirma que o juiz deixou de homologar a prisão com fundamento no artigo 310 do Código de Processo Penal. Entende que houve ilegalidade do flagrante. “No mesmo dia em que considerou ilegal o flagrante do caso questionado, o juiz proferiu decisões de homologação de prisões”, diz a defesa.

Argumentam ainda que o juiz decidiu com base “em suas prerrogativas funcionais constitucionalmente asseguradas, da independência judicial e do livre convencimento”.

“A instauração de processo disciplinar violaria a dignidade e a independência do magistrado, previstas na Constituição e na Loman.”

Citam que o Ministério Público apresentou recurso, teve liminar concedida para suspender os efeitos da decisão questionada. “Expedientes administrativos disciplinares não podem servir como sucedâneos recursais”, afirmam.

Sobre a impossibilidade de punição de juízes pelo conteúdo de suas decisões, transcrevem crítica do advogado Pierpaolo Cruz Botini: “o Conselho Nacional de Justiça, órgão do Poder Judiciário que visa fiscalizar as condutas dos magistrados, vem decidindo, por reiteradas vezes, que os magistrados não podem ser manietados, ou seja, tolhidos por decidirem de acordo com seu convencimento e no estrito cumprimento da legalidade.”

Em favor do juiz Marcílio Castro, citam também a decisão do CNJ que julgou procedente o pedido de revisão da desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, penalizada por decidir de acordo com seu entendimento e no estrito cumprimento legal. O CNJ anulou a punição.

Pareceres de juristas

Foram juntados aos autos pareceres pro bono [trabalho voluntário] do jurista Lênio Luiz Streck e do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). Streck conclui que as decisões do juiz Marcílio Moreira “foram exaradas nos estritos limites do Estado de Direito, entendido como Rule of Law, isto é, de que o ordenamento jurídico-constitucional sempre deve ser de limitação do –e ao– poder”.

O jurista registra que o corregedor do TJ-SP considerou que “as decisões – em especial aquela envolvendo o tráfico ilícito de entorpecentes – estão eivadas de ativismo judicial e viés ideológico em detrimento da ordem pública, chegando ao ponto, inclusive, de mencionar que os argumentos lançados pelo magistrado denotam preconceito em face dos órgãos de segurança pública, mormente a Polícia Militar de São Paulo”.

“As decisões que foram objeto de análise estão revestidas de boa técnica e não denotam preconceito”, conclui Streck.

Segundo o IDDD, é “fundamental levar em consideração que os ocupantes do veículo abordado (…) são todos pardos (…), razão que não deixa afastar a ideia segundo a qual, fossem todos eles brancos e não estivessem num veículo popular, não teriam sido abordados.”

O parecer do IDDD conclui que “nada além de ‘certo grau de nervosismo’ foi levantado pelos policiais militares condutores do flagrante”.

“Certo grau de nervosismo não é prova de cometimento de crime. É aferição puramente subjetiva, impossível de fundamentar ato que implique no afastamento de garantias constitucionais, como a intimidade.”

O parecer do IDDD é assinado pelos advogados Flávia Rahal, presidente do Conselho Deliberativo, Hugo Leonardo, presidente da Diretoria Executiva,  Guilherme Ziliani Carnelós, Theuan Carvalho Gomes e Clarissa Tatiana de Assunção Borges.