Tribunal paulista abre processo contra juiz e acirra as divergências com o CNJ
O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) abriu, nesta quarta-feira (7), processo administrativo disciplinar contra o juiz substituto Marcílio Moreira de Castro, de Araçatuba (SP). O Órgão Especial vai examinar cinco decisões do magistrado e apurar os motivos que o levaram a relaxar flagrante de apreensão de 133 quilos de maconha pela Polícia Militar.
As manifestações da defesa e os votos de alguns desembargadores sugerem um acirramento da polêmica sobre a independência dos juízes e os limites das corregedorias dos tribunais.
O julgamento tornou mais explícitas as divergências entre o TJ-SP e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Na sessão do Órgão Especial no último dia 31/3, pedido de vista do presidente Geraldo Francisco Pinheiro Franco adiou o julgamento para decidir sobre a instauração do processo disciplinar.
O presidente sustenta que é necessário entender o alcance da decisão do magistrado de Araçatuba, município do centro-oeste paulista, onde “estão inseridas rotas de tráfico de cocaína proveniente da Bolívia e de maconha com origem no Paraguai”.
Ele destaca que está em julgamento suposta “atuação tendenciosa, em prol de acusados de prática de crime de tráfico de entorpecentes”.
Ao pedir vista, Pinheiro Franco disse que era necessário “ficar bem definido se a deliberação do magistrado tem um caráter pessoal, não-jurisdicional, nos limites da lei e da compreensão dos fatos, ou se tem outra conotação”.
Precedente perigoso
Em sustentação oral, a advogada Débora Cunha Rodrigues disse que instaurar o processo disciplinar seria “criar perigoso precedente contra todos os magistrados paulistas, além de incorrer em flagrante ilegalidade, data venia”. Segundo ela, “um conflito de ideias não pode jamais violar as garantias da Loman (Lei Orgânica da Magistratura Nacional)”.
Para a defensora, “ainda que no ato do flagrante tenha sido apreendido vultoso montante de entorpecentes, segundo entendimento esposado em decisão muito bem fundamentada, não existia fundada suspeita para a abordagem que levou ao flagrante”.
Rodrigues disse que “o magistrado decidiu de acordo com sua compreensão jurídica, respaldado em prerrogativas funcionais da independência judicial e do livre convencimento”, garantidas pela Constituição.
Também participam da defesa do juiz Marcílio Castro os advogados Igor Sant’Anna Tamasauskas e Pierpaolo Cruz Bottini.
Decisão teratológica
O corregedor-geral Ricardo Anafe redigira inicialmente voto favorável à abertura do processo disciplinar. Como em fevereiro último o CNJ julgou caso análogo sobre a independência dos magistrados, e absolveu o juiz paulista Roberto Corcioli Filho, Anafe mudou seu voto. [Por 12 votos a 2 o CNJ anulou a censura aplicada pelo Órgão Especial a Corcioli Filho, então acusado de proferir decisões “com viés ideológico” e “soltar muito”].
Na sessão anterior, o corregedor propôs ao Órgão Especial acolher a defesa prévia do juiz de Araçatuba –em razão do precedente do CNJ–, mesmo discordando daquela decisão plenária do órgão de controle do Judiciário.
Nesta quarta-feira, a maioria rejeitou a defesa prévia (por 22 votos a 3) e acompanhou a divergência aberta pelo desembargador Moreira Viegas. Além do corregedor Ricardo Anafe, os desembargadores Moacir Peres e Márcio Bártoli votaram pelo arquivamento.
O corregedor entende que a decisão do juiz Marcílio Castro é “teratológica [anormal] e divorciada da realidade jurídica”.
“Não vejo apoio constitucional, infralegal e jurisprudencial. O que eu vejo é uma ideologia própria do magistrado, um preconceito contra a atuação da Polícia Militar.”
Ao referir-se à decisão do CNJ, o desembargador Soares Levada ponderou que “os fatos nunca se repetem de forma igual”. Ele votou contra o arquivamento dos autos. Disse que –embora não se deva presumir– é extremamente necessário que se apure com o máximo rigor se houve uma idiossincrasia pessoal, ou uma falha de formação jurídica do magistrado de Araçatuba.
O desembargador Alex Zilenovski elogiou o corregedor e também divergiu de Anafe: “Em que pese da decisão do CNJ, o Tribunal de Justiça não pode se apequenar, não pode abrir mão do seu dever e seu poder censório”.
“O juiz tem que ter liberdade para decidir. Sua convicção há que ser respeitada”, diz Zilenovski. “Não é porque há uma decisão do CNJ que devemos, desde já, abrir mão de verificar o que há por trás.”
O desembargador Ferraz de Arruda afirmou que “as decisões do CNJ são administrativas, não fixam tese para os tribunais estaduais”. Lembrou ainda que o conselho é formado por membros transitórios.
Politização dos juízes
Para o presidente do TJ-SP, o julgamento que absolveu Corcioli Filho no CNJ “fugiu da impessoalidade que deve nortear os julgamentos”.
Em seu voto, Pinheiro Franco diz: “É preciso que se discuta seriamente essa questão, quando ela se apresentar, porque os tempos são outros também, de forma aberta, transparente e responsável, porque é dever de todos impedir a politização da jurisdição, a aplicação do direito com ideologia e a decisão com lastro em opinião pessoal do magistrado, fora dos limites da lei”.
O presidente diz que o STF já decidiu em várias oportunidades que “não há direitos absolutos, ilimitados ou ilimitáveis, mesmo entre aqueles de estatura constitucional”.
Segundo ele, não é diferente em relação à imunidade do artigo 41 da Loman, “sob pena de criar-se situação de perplexidade em que o juiz nunca pode ser punido na seara administrativa pelo teor de suas decisões, mesmo quando rompe conscientemente a submissão à lei e manipula o ordenamento ao sabor das circunstâncias, de eventuais interesses, ou apenas segundo seu sentimento subjetivo de justiça”.
O artigo 41 da Loman estabelece que “salvo os casos de impropriedade ou excesso de linguagem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir”.
O presidente diz que o juiz Marcílio Castro escolheu Araçatuba para iniciar sua atividade jurisdicional “e lá está há dois anos e cinco meses, embora já lhe fosse possível, como muitos outros juízes do mesmo concurso, promover-se para o cargo de juiz de direito de entrância inicial”.
Diz que o magistrado “conhece bem a relevante questão do tráfico e seus deletérios reflexos”, e que, “desde então, quer em decisões, quer em sentenças, manifesta verdadeira defesa dos acusados (imprópria para um juiz), que, segundo expõe, são ‘indevidamente importunados’ pela Polícia Militar”.
As críticas do magistrado, que resultam no relaxamento das prisões em flagrante, referem-se a ações da polícia em que muita droga é encontrada, diz Pinheiro Franco.
“A polícia é repreendida por desempenhar seu papel, por revistar carro e encontrar 133 quilogramas de maconha. A situação é inusitada”, comenta o presidente.
A atuação da Polícia Militar foi elogiada pelo desembargador José Damião Machado Pinheiro Cogan, que foi professor de vários oficiais da PM.
Ao rebater o entendimento do juiz Marcílio Castro de que “não existia fundada suspeita para o flagrante”, alguns desembargadores citaram que a suspeição foi confirmada pela apreensão de 133 quilos de maconha.
Garantia do cidadão
Pinheiro Franco afirmou que a Loman, ao dispor que o juiz não pode ser punido ou prejudicado pelas opiniões ou pelo teor das decisões, “contempla garantia em benefício da sociedade e não direito subjetivo do juiz de decidir ao arrepio da lei e de acordo apenas com sua vontade”.
Referindo-se ao argumento da defesa de que as decisões do juiz Marcílio Castro observaram a jurisprudência dominante dos tribunais superiores, Pinheiro Franco diz que “não é esse o resultado de pesquisa da mais recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acerca de prisão em flagrante e tráfico de drogas”.
Ele também cita inúmeros precedentes do CNJ no sentido oposto ao do julgamento da revisão disciplinar de Corcioli.
Uma das decisões grifadas afirma que “o princípio da independência judicial não constitui manto de proteção absoluto do magistrado, capaz de afastar qualquer possibilidade de sua punição em razão das decisões que profere, e tampouco funciona como a cartola de mágico, da qual o juiz pode retirar, conforme seu exclusivo desejo, arbitrariamente, ilusões de direito”.
“É uma garantia do cidadão para assegurar julgamentos livres de pressões, mas de acordo com a lei e o direito”, conclui Pinheiro Franco.