Contradições e mazelas da justiça penal

Sob o título “Justiça Penal: Mazelas, Contradições e Julgamentos“, o texto a seguir é de autoria de Caetano Lagrasta, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Árbitro e Perito com atuação na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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Longos anos dedicados à Justiça Criminal enfatizaram enormes deficiências e foi assustador para nós, então juízes novos, constatar que, na visão do Conselho Superior da Magistratura (CSM), existiriam classificações, puramente arbitrárias e não escritas, que nos dividiam: a) juízes cíveis – profissionais inteligentíssimos e diligentes, na discussão da problemática processual; b) juízes criminais – menos preparados e, portanto, destinados ao trato com a delinquência e Polícias.

Na sequência, subdivisões menos expressivas: juízes de menores (designação à época) – para os menos capacitados, alguns, até, classificados como emocionalmente desequilibrados, e que se dedicavam à Infância e Juventude transviadas e suas famílias, nos becos de favelas e desvãos de cortiços; a seguir vinha a elite conservadora das Varas de Família e Sucessões capaz de garantir, enfrentar e repudiar o perigo do “divórcio”, nada obstante, em geral, considerados meros homologadores de acordos.

Vivendo sob os riscos dos “anos de chumbo”, impõe-se às polícias o hábito da produtividade a qualquer preço, através de estatísticas extraídas aos Boletins de Ocorrência, eivadas de falsidades e que colocavam às escâncaras a mentirosa impressão de trabalho e combate à violência, num tempo de crescente criminalidade originada na repressão, no arrocho salarial e na desastrosa política econômica ufanista.

Na sequência, chegou-se – por imposição de políticas internacionais – ao combate sistemático às drogas e seus usuários.

Naqueles tempos, a apreensão de gramas tornou-se motivo costumeiro para a decretação de pesadas condenações, à inspiração de flagrantes forjados e violências indescritíveis, com objetivo de “engordar” estatísticas e “mostrar serviço”.

Sentíamos, desde aquele início, o desamparo a que constrangidos, nós juízes criminais, ao decretar duvidosas e injustas condenações tendo como alvo a cega repressão ao “tráfico de entorpecentes”, medido em gramas ou ao sabor de furtos e roubos inexpressivos ou de capengas acusações. Criminalidade essa, em sua quase totalidade, atribuída aos pobres e aos pretos, além de outras minorias.

Assim, logo fomos convencidos de que a defesa da sociedade deveria estar dirigida à proteção do patrimônio em detrimento dos crimes contra a vida, por interpretação e aplicação político-ideológica do Código Penal de 1940.

Aos juízes pouco sobrava ante a impossibilidade de afrontar os membros do Alçada Criminal e àqueles da Seção correspondente do Tribunal de Justiça, bem como à política seletiva das polícias, amparadas num displicente enlace com o Ministério Público.

A pletora de serviços, por sua vez, entulhava os cartórios, com notórias deficiências materiais, e mastigava seus servidores, submetidos a paupérrimos vencimentos, na vã tentativa de combater ainda a falsidade das estatísticas policiais.

Não cabe duvidar que a repressão política e, antes dela, a criação de “esquadrões da morte”, conduziram a atividade policial à violência e ao relaxamento na observância dos direitos e garantias dos cidadãos, especialmente daqueles obrigados a perambular pelas ruas, em busca de trabalho ou na luta surda de seus filhos, que tentavam escapar à miséria do lar, sem possibilidade de frequentar escolas ou conseguir ocupação decente, porém, desde logo atraídos pela delinquência, de início ao pequeno furto, em seguida como corréus de assaltos e, por fim, no transporte da traficância, na condição de “mulas”.

Cumpriam ordens das milícias e do crime organizado, que já se infiltravam no tecido social e que, em muitos lugares, substituíam o Estado na “proteção” das comunidades carentes, ao distribuir benesses, segurança e garantir-lhes formas de sobrevivência.

Neste ponto, cabe menção à aberrante experiência, imposta pelo Judiciário de São Paulo, para “resolver” a questão do transporte pela Polícia de réus presos, aos interrogatórios e presenças obrigatórias nas audiências de Instrução, de todas as Varas Criminais do Fórum Central.

Para tanto criou-se uma espécie de anexo, nos subterrâneos do Palácio da Justiça, que funcionava no período da manhã, perante juiz designado, omitindo-se, desta forma as  inafastáveis presenças do juiz natural e do advogado, exceção aos réus de posses etc.

Esses interrogatórios – de feição absolutamente mecânica e ilegal – eram conduzidos e transcritos por escrevente, resumindo-se às meras perguntas de praxe, após a negativa de autoria, lavrando-se termos que seriam, ao fim do expediente, assinados pelo magistrado.

Desde aqueles tempos, estas circunstâncias delineavam a moldura de encaixe à Justiça Criminal.

Desconhecem-se, se é que existam, estatísticas das decisões plenárias, antes da criação do “Órgão Especial”, mas, com a criação deste e seu agigantamento, sobrelevou a função de órgão auxiliar da Administração do Tribunal e o auxílio na fiscalização do comportamento e desempenho profissional dos magistrados.

De qualquer forma, buscando-se sempre e cuidadosamente impedir avanços à esfera jurisdicional, ou seja, que o Órgão não pudesse se imiscuir ao mérito de decisões ou sentenças ou discutir a mecânica própria do convencimento dos juízes.

É correto afirmar que sentenças ou despachos sejam modificáveis somente através de recursos previstos na doutrina processual, enquanto que a função censória deve ser examinada à luz da eventual parcialidade, impedimento ou suspeição do magistrado, após o esgotamento das esferas recursais e administrativas, estas sigilosas ao seu início, sem submeter juízes à abertura de expedientes que possam constrange-los ou macula-los perante a sociedade e suas famílias.

Assim, aferidos os fatos do processo, no caso, através da condenação ou absolvição e comprovado o excesso, cabe àquele Órgão, agora na função corregedora, aplicar, depois de instaurado procedimento administrativo, a pena que couber, nos termos da lei.

Desde logo, é justo que se esclareça que a interpretação da lei, como no caso, a partir de circunstâncias do flagrante ou de sua conversão em prisão provisória, estando de acordo com as determinações legais, após interpretação e formada a convicção do magistrado, não pode servir de base e fundamento, ainda que a este se propicie a chance de esclarecimentos, a decisões de cunho administrativo, sob pena de desprezarmos princípios constitucionais, processuais e da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), além das recentes decisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Acresce, neste ponto, anotar que a Justiça Criminal sempre esteve dividida entre “juízes condescendentes e juízes rigorosos” – os epítetos aplicáveis são costumeiros e alguns menos educados e respeitosos.

Esse embate surdo perpassou e perpassa desde sempre a atividade do juiz na esfera penal. E, cada um de nós, poderia indicar outras ofensas dessa espécie, sempre em detrimento do exercício na atividade.

Contudo, não há negar que o Ministério Público, desde sempre, ostenta melhores condições materiais e de trabalho e, por óbvia necessidade, mantenha contato mais próximo às Polícias, protegendo-as, o quanto possível, de críticas ou representações de juízes, advogados e encarcerados.

Os abusos praticados nos “corrós” de delegacia, onde amontoados detidos e réus condenados, sem acesso à Defesa ou a quaisquer direitos, como alimentação ou condições sanitárias e de higiene razoáveis, igualmente notórios, devem ser atribuíveis ao parquet e aos próprios juízes Corregedores de Presídios, no exercício destas funções nas respectivas comarcas, o que ainda hoje persiste, sob pálida vigilância.

Pouco foi feito pelo governo e pelo Tribunal de Justiça neste âmbito, enquanto que juízes que se atrevam a trazer ao conhecimento do Conselho Superior da Magistratura fatos desta natureza e gravidade, acabam, em geral, por receber a indiferença ou o repúdio, quando não, críticas, advertências ou censuras públicas, vendo-se obrigados, por dever de consciência, a julgar de acordo com observância aos princípios legais e constitucionais mínimos, correndo o risco de serem acoimados de julgadores à margem da lei ou submetidos a ideologias.

Da análise perfunctória do expediente, em desfavor do magistrado, Marcílio Moreira de Castro, verifica-se que o pedido de instauração traz assinaturas do Deputado Federal Guilherme Derrite (PP-SP), ex-comandante da ROTA; do Deputado Estadual Frederico Braun D’Ávila (PSL-SP) e do falecido Senador, Major Olímpio, circunstância que, de qualquer modo, reveste o caráter castrense das reclamações, em defesa aberta da Polícia Militar, eis que todos foram servidores da Segurança Pública.

Chama a atenção, desde logo, que os condutores do flagrante mencionem demonstrar os réus “certo grau de nervosismo”, na presença dos militares. Cabe, então, considerar que tal estado de espírito acomete qualquer cidadão que seja constrangido à mesma situação.

De outro lado, a mera desconfiança não pode justificar medida ostensiva e repressora da Polícia, no caso, Rodoviária Federal, ou ser capaz de embasar o raciocínio do denunciante Derrite, de que havia na espécie “fortíssimos (?) indícios de tráfico interestadual de entorpecentes”. Quais?

Resulta clara a tentação de enveredar pela discussão sobre o vínculo militar dos autores das representações ou menção à reforma de recentes decisões do Órgão Especial, pelo CNJ, para admitir ou negar eventual caráter ideológico da decisão atacada, por impossível afirmar enfoque ideológico aos elementos de convicção do magistrado, ao perigo de desprestigiar decisão eminentemente jurídica, diante de argumentos políticos, despiciendos a uma justa conclusão.

Ao que se extrai dos votos, não há qualquer mácula, equívoco ou desvio, capaz de desmerecer a decisão em sua análise jurídica do ato.

Se o magistrado tenha que ou venha a constantemente rever atos da atividade policial, há que se perquirir de forma objetiva, primeiro se elas mereciam ser arquivadas ou se realmente teria incorrido em qualquer das duas vazias contraposições: a primeira, no vínculo mencionados pelos autores das representações, na tentativa de opor argumentação de ordem indisfarçavelmente político-ideológicas à decisão jurídica; e a segunda, já no âmbito do Órgão Especial, de pairar sobre sua decisão o fantasma de revisões impostas pelo Conselho Nacional de Justiça, como esfera de correção aos atos do Poder Judiciário, a macular sua independência e/ou corrigir arrogâncias, por parte de nossa Justiça estadual.

Dizer, como no voto do presidente da corte, que a discussão trazida pelo magistrado sobre características ou abusos da atividade judicial tenham caráter eminentemente ideológico, quer parecer que doravante os magistrados devem submeter o raciocínio de sua convicção, à correção da atividade policial ou ao pensamento dos membros do 2º Grau, o que torna absolutamente inviável a busca da Justiça, por evidente distanciamento ao fragor dos fatos.

Com certeza, nenhuma destas hipóteses terá o condão de, só por si, modificar a decisão judicial, estribada, ao que dessume, nos princípios aplicáveis pelo Código e leis penais e aos princípios processualísticos da Constituição, enquanto que a querela entre duas instituições da Justiça pode até ser objeto de encômios ou críticas, porém não se prestam ao empobrecimento das decisões do Tribunal ou a desmerecer a convicção dos juízes que as proferem.

Não é de hoje, o debate que permeia questões da atividade policial incontrolável e violenta – ao assomo de ameaças imaginárias – em confronto à convicção dos juízes, sem esquecer que ideologia é característica de qualquer ser pensante, especialmente na busca do convencimento.

Acresce-se que o desprestígio da Justiça Penal vem de longa data, conforme acima lembrado, por inafastável nódoa de origem ao caráter político-repressivo aos pobres e agravado por desvio ditatorial imposto, desde os idos de 1964, e que hoje se vê retomado por desmandos e atitudes atrabiliárias e desconexas do governante.  

O teor do voto do Corregedor Geral da Justiça indica que a conduta do magistrado mostra indícios de infração disciplinar, para ao final, no dispositivo, acolher as razões da Defesa e determinar o arquivamento.

Desta forma pode-se entender que o teor do voto divergente, do presidente do Tribunal, procura investir contra o dispositivo do voto do relator, que ao respeitar de alguma forma a convicção do magistrado, não enxerga razão para o recebimento e instauração do expediente.

Ora, como escapar ao dilema: ou bem o magistrado teria proferido decisão equivocada, ideologicamente dolosa e teratológica, ou procedeu regularmente e de acordo com os princípios aplicáveis, ao extrair a pura convicção de sua consciência?

Paira dúvida? Então quer parecer correto que se busque o arquivamento, incabível qualquer forma de censura ou punição e, até mesmo, a instauração de Representação. Indício? Em questão que examina o respeito devido a atividade judicante? Tal dúvida não pode admitir que se conclua pela instauração, ante a incerteza de conduta ideológica, no conflito entre convicções jurídicas e/ou acusações de outras(?) formas ideológicas de se chegar ao convencimento.

Apreensões em poucas gramas, que poderiam ter sido efetivas ou verdadeiras, no passado, “plantadas” nos bolsos quando da “revista”;  hoje, pelo volume em quilos ou toneladas, tende a obrigar invasão de domicílio e formas mais graves de abordagem, desde que amparadas, em quaisquer hipóteses, por indícios veementes e não por desconfiança aleatória ou preconceitos de raça, cor ou gênero, dentre outros.

Contudo, não é disso que se deve tratar, mas de garantir os direitos ao cidadão que apenas caminha ou trafega por ruas e estradas, sem praticar qualquer infração, e que não pode ser averiguado e hostilizado por meras suspeitas, ou em atitude de “nervosismo”; estes fatos exigem, como se verá, a imediata resposta de magistratura consciente e corajosa.

Não se duvida que a reiteração dessa conduta, por parte das Polícias, busca alcançar um bill de indenidade a qualquer espécie de repressão, nada obstante deságuem em agressões, legítima defesa contra abusos e ilegalidades, ferimentos ou morte.

Ser conduzido por policiais perante os filhos, parentes ou a sociedade, macula a honra de qualquer de nós, ao ínfimo preço da mera desconfiança.

Toda esta epopeia de indignidade e abuso pode ser minimizada, também, através da instalação pelos estados e municípios de câmeras nos veículos policiais, nas ruas, logradouros, espaços comunitários, delegacias ou bairros de periferia, visando melhorar a vigilância preventiva e diminuir o abuso da repressão violentadora.

E, nesta trajetória, chegamos ao exemplo mais trágico daquela família que trafegava corretamente, e que, por mero equívoco ou infundada suspeita, teve seu veículo crivado por mais de 80 tiros de fuzil (nesta segunda-feira, 12/3/2021 confirmados por editorial da Folha, 257 disparos), com mortes etc.

Como negar, portanto, a marcha implacável de racismo e preconceito – não muito distantes daquele ódio supremacista disseminado por tradição ianque – e que o Brasil busca remedar?