Procurador da República grava ‘epitáfio de sepultamento dos delitos da Lava Jato’
Sob o título “É lícita a prova da contraoperação Vaza Jato?”, o artigo a seguir é de autoria do procurador da República Celso Três, de Novo Hamburgo (RS).
Como este Blog já registrou, Três atuou no caso Banestado, mantém apoio ao procurador-geral da República Augusto Aras e tem sido crítico da força-tarefa da Lava Jato. Colegas atribuem o fato a ressentimentos, por não ter sido convidado para compor a equipe de Curitiba.
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Prova é, muito além de ser a essência, ao fim e ao cabo o que de fato interessa no processo judiciário, dos grandes temas humanos.
Pontua o jornalista e escritor Juremir Machado da Silva: ao contrário do que imaginam os seus críticos, a pós-modernidade é louca por provas. O problema dos pós-modernos com os modernos é que os primeiros acham que os últimos aceitam como prova tudo aquilo que corresponde às suas crenças.
Jean-François Lyotard, autor do livro que praticamente deu o pontapé inicial ao debate sobre pós-modernidade nas ciências humanas, “A Condição Pós-Moderna”, questionava, escavando na história da filosofia, certezas modernas: o que prova que uma prova é uma boa prova e prova alguma coisa?
Instituto penal clandestino que pauta a investigação e o próprio Brasil, “operação”, expressão que o dicionário Houaiss data do século XV, tem o sentido originário de combate, manobra militar. Ou seja, significado histórico da ação militar de guerra, combate ao inimigo.
Se é correto que a significação das palavras é dinâmica no correr histórico, não menos verdade que a história do verbete, sentido original, segue pautando os valores que propaga. ´In casu’, direito penal do inimigo.
Corroborando, diz o Código de Processo Penal Militar:
‘Sentido da expressão “forças em operação de guerra”
‘Art. 709. A expressão “forças em operação de guerra” abrange qualquer força naval, terrestre ou aérea, desde o momento de seu deslocamento para o teatro das operações até o seu regresso, ainda que cessadas as hostilidades.’
Às centenas, Wikipédia lista as operações da Polícia Federal entre 2003 e 2020. Inúmeras delas, a exemplo da Lava Jato, desdobram-se em dezenas de outras etapas.
Começou antes, governo FHC (1995/2002), quando capturou audiência do noticiário policial/judiciário, incorporado ao ‘modus faciendi’ da Justiça pátria, rotina nas edições da Folha de S.Paulo.
Polícias Civil e Militar dos Estados, respectivos Ministérios Públicos/GAECOs, demais órgãos da União, a exemplo da Polícia Rodoviária/PRF, Receita Federal, Controladoria-Geral/CGU, Tribunal de Contas/TCU, Advocacia da União/AGU, CADE… seguiram idêntica senda.
A maioria destas operações ostentaram tenência ao devido processo legal, de todo idôneas no combate à criminalidade, por sua vez sabidamente sempre mais lesiva, complexa e organizada.
‘”Operação ultrarrápida de ações é investigada. Comissão dos EUA analisa se operações de alta frequência, em que ordens duram milissegundos, são válidas (…) essas operações respondem por 73% do volume diário de transações com ações nos Estados Unidos” (Folha de S.Paulo, 29/07/2009).
“PF não consegue abrir arquivos de Dantas – Criptografado, conteúdo de computadores apreendidos no apartamento do banqueiro no Rio não é acessado pela perícia”(Operação Satiagraha, banqueiro Daniel Dantas – Opportunity, Folha de S.Paulo, 22/09/2008).
“Operações” pautam não apenas a investigação criminal, indo muito além, atingindo fundo a institucionalidade do estado e democracia, consoante por todos testemunhado na última eleição presidencial.
‘Legem habemus’? Neste sentido da espécie de investigação, pesquisando ‘operação’ em nossa legislação, seja constituição, códigos penal e processual vigentes e pretéritos, leis extravagantes, constatará sua ausência. Estatuto da organização criminosa (Lei nº 12.850/13) refere como sinônimo de apuração, mas sem dar qualquer disciplina própria.
Entre tantas decorrências, criou-se a figura do juiz da operação, ou seja, dezenas, chegando às centenas de processos, no correr de anos a fio, todos sem distribuição, esteio do juiz natural, o primado do devido processo legal, são direcionados a idêntico magistrado, incluindo todos os tribunais, chegando a Brasília, onde temos o ministro da respectiva operação no STJ e STF.
Para que cada processo exima-se da distribuição, repita-se, esteio do juiz natural, primado do devido processo legal, há que haver conexão e/ou continência.
Código de Processo Penal:
‘Art. 76. A competência será determinada pela conexão:
I – se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II – se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III – quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.
Art. 77. A competência será determinada pela continência quando:
I – duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração;
II – no caso de infração cometida nas condições previstas nos arts. 51, § 1o, 53, segunda parte, e 54 do Código Penal.’
Na maioria das operações, inexiste conexão e/ou continência em todos os processos a elas afetados.
De forma geral, apenas existe a identidade de alguns réus, não todos, com diversidade de tempo, lugar e dos próprios delitos.
Também recorrente a comunhão da prova. Porém, ela, por si só, é insuficiente. Urge que a prova de um delito seja determinante a outro crime, evitando assim decisões conflitantes, razão da conexão.
Exemplo rotineiro é a polícia autuando em flagrante por tráfico de drogas, também detectado moeda falsa. Tráfico e cédula falsa nada tem de conexão probatória. Moeda falsa é competência da Justiça Federal.
Igualmente sem conexão a detecção da prova, a exemplo da busca e apreensão, interceptação de comunicação ou quebra de sigilo quando acham-se outros crimes que não os motivadores da investigação(serendipidade, encontro fortuito de provas).
Também não há conexão na lavagem de dinheiro em face dos delitos que geraram a pecúnia suja. Tanto assim que a lei reporta que a condenação por lavagem independe do crime originário. Juiz da lavagem decide apenas sobre a unidade ou não do julgamento de processo (delitos de lavagem e originário) que já esteja sob sua competência (art. 2º, II, da Lei nº 9.613/98). Na prática, não tendo sido. Invoca-se a lavagem pra atrair competência de outros delitos pretensamente originários do dinheiro sujo.
Neste cenário de centenas de processos e incompetência, precisamente a nulidade em face do ex-presidente do Lula sacramentada pelo STF, temos a mais relevante e irrepetível operação da história, a Lava Jato.
Quantidade e ‘status’ dos agentes públicos e capitalistas privados envolvidos, valores desviados e recuperados, prisões, condenações, confisco patrimonial e outras medidas formaram quadro de impacto verdadeiramente mundial, de grandiloquência cinematográfica.
Porém, tal qual o Titanic, engenharia naval colossal naufragado pelos descaminhos da tripulação (Le Monde sentenciou: ‘Le naufrage de I´opération anticorruption Lava Jato au Brésil’ – 09/04/2021), Lava Jato afundou mercê de três vícios fundamentais:
a) atentado à democracia, indiscriminado e leviano bombardeio a todo espectro político; nas cinzas da política, a democracia jamais encontrará seu berço. Daí, nascem Berlusconi na Itália e Bolsonaro no Brasil.
O enxovalhamento da política é a tática comum de todos os déspotas da história; eloquente o projeto de monumento (escultura) à Lava Jato, na palavra do idealizador e também homenageado Deltan Dallagnol:
“… minha primeira ideia é esta: algo como dois pilares derrubados e um de pé, que deveriam sustentar uma base do país que está inclinada, derrubada. O pilar de pé simbolizando as instituições da justiça. Os dois derrubados simbolizando sistema político…” (Folha/The Intercept Brasil, 21.ago.2019); na verdade, usurando a soberania do voto popular, pretendiam eles escolher os políticos, evidenciado quando emitida a carta do Rio de Janeiro, todos sob a palavra de ordem de Deltan: ‘2018 é batalha final para Lava Jato”, pregando que nenhum dos parlamentares fossem reeleitos (Folha, 27.nov.2017)
b) atentado à economia, ‘modus faciendi’ que quebrou empresas, projetos de Estado e dizimou milhões de empregos (vide estudo do Dieese), sendo emblemático a Petrobras, vítima da corrupção, entregue de bandeja à punição draconiana dos EUA; note-se que nenhum dos alardeados acordos de delação/leniência ateve-se em preservar empregos;
c) atentado ao devido processo legal, toda sorte de atropelos, prisões levianas, conduções espetaculosas, destruição de reputações; de icônico simbolismo que o big boss da Lava Jato, procurador-geral Rodrigo Janot, ora está sob exótica e inédita ‘lei maria da penha’ do STF, qual seja, sob medida cautelar de não aproximação da Suprema Corte.
Lava Jato teve –e ignorou!– um standard precioso para não desviar-se. Foi a persecução do mensalão. Nela, o procurador-geral da República Antonio Fernando foi cirúrgico. Ação, pautada pela redução de danos, não lesou o devido processo legal, economia, tampouco a democracia
Em face da Lava Jato, tivemos também a inédita contraoperação Vaza Jato, ato de contrainteligência que revelou as conversações das principais autoridades da Lava Jato, descortinando a público seus desvios.
Revelações estas, obra de hacker, que também gerou investigação própria, Operação Spoofing
A questão crucial é a validade ou não dessa prova em favor dos réus da Lava Jato, bem assim contra os procuradores da República integrantes da operação.
Brasil tem a peculiaridade de inscrever na sua constituição (art. 5º, LVI), status de direito fundamental, a proscrição genérica das provas ilícitas, inexistindo nas demais nações, notadamente Estados Unidos e Itália, ordenamentos comumente invocados no debate da prova ilícita.
Carta de Portugal veda alguns meios de prova, tortura, violação da vida privada, domicílio ou comunicações.
Então, aqui, a discussão é constitucional.
Sabidamente, os direitos fundamentais, nestes a vedação da prova ilícita, no processo penal são oponíveis ao Estado no exercício do ‘jus puniendi’ contra os réus. Não ao reverso, ou seja, os abusos do Estado podem ser provados livremente. Princípio este, de sólida base jurisprudencial e doutrinária.
A própria Lava Jato, quando elaborou anteprojeto intitulado “10 Medidas Contra Corrupção”, consagrou, propondo ao art. 157 do Código de Processo Penal:
‘§ 2º Exclui-se a ilicitude da prova quando:
VIII – necessária para provar a inocência do réu ou reduzir-lhe a pena;
IX – obtidas no exercício regular de direito próprio, com ou sem intervenção ou auxílio de agente público;’
Outra razão da franquia de prova ilícita em prol do réu é o óbice da chamada prova diabólica, ou seja, ser impossível ao cidadão vitimado pelo abuso de autoridade do Estado demonstrar o ocorrido, eis que ele não dispõe de instrumentos investigatórios dessas autoridades e o corporativismo da burocracia obsta qualquer apuração.
Alguém acredita fosse minimamente possível que o juiz Sergio Moro e os procuradores da República fossem alvos de investigação das instâncias superiores?
Douglas Fischer, ilustre procurador regional da República, professor de processo penal, autor de vários livros na área, ex-integrante da Lava Jato na Procuradoria-Geral titulada por Rodrigo Janot, artigo ‘Os limites da prova ilícita produzida no curso da operação Spoofing’ , também admite uso em prol dos acusados.
Ressalta ele, todavia, que deve a integridade das conversações estar cabalmente provada, incluindo cadeia de custódia. Nisto, data venia, divergimos.
Aqui, aos acusados basta a verossimilhança do abuso pelas autoridades, emanação da presunção de inocência. Não trata-se de prova condenatória. É prova absolutória. Urge ao imputado apenas ônus de infirmar a acusação, semear fundada incerteza contra à sua idoneidade, nisto compreendido o descumprimento do devido processo legal pelo juiz e procuradores da República, despiciendo prova cabal, irrefutável do vício.
Frise-se que sequer os membros da Lava Jato negam o conteúdo dos diálogos, lançando justificativas, a exemplo do procurador Orlando Matello, tachando como “conversa de bar”.
Questão que tem passado ao largo é a suspeição dos procuradores da República. Cinge-se a discussão na suspeição do juiz Sergio Moro, apenas.
As hipóteses legais de impedimento e suspeição são idênticas entre juízes e Ministério Público (art. 258 do CPP).
A distinção está apenas na função, julgar e acusar. Ambas são magistraturas. A primeira, “sentada”, devendo ser inerte na produção probatória para não deixar-se inclinar a uma ou outra parte. A segunda, “em pé”, ativa, no encalço em trazer a verdade do mundo à verdade dos autos, seja contra ou a favor do imputado.
Função primacial do Ministério Público é fiscal da lei e não a acusação, tampouco a exculpação (delação premiada). “À charge et à décharge”: inculpar ou exculpar.
Estatuto de Roma(Tribunal Penal Internacional – Decreto nº 4.388/02):
“1. O Procurador deverá:
- a) A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa;
O impedimento e suspeição é freio e contrapeso à independência funcional. Ou seja, se o procurador da República não sofre subordinação hierárquica quando da acusação, igualmente não pode deixar-se pautar por (des)apreços pessoais.
Quando, no caso triplex do Guarujá, os promotores de Justiça/SP, em insólita digressão doutrinária em face de do ex-presidente Lula, confundiram Engels com Hegel não foi apenas uma canelada cultural. É uma confissão de suspeição.
Imputação, em hipótese alguma, pode desviar-se dos elementos que o legislador insculpiu como objeto(tipo) de repressão criminal, adentrando à pessoalidade ideológica, religiosa, sexual ou cultural de quem quer que seja.
Na Vaza Jato, entre tantas revelações, muito claro, categórico a ojeriza dos procuradores da República ao ex-presidente Lula. Ministério Público não pode atuar em face dos amigos, tampouco inimigos.
Estatuto de Roma:
- O Procurador e os Procuradores-Adjuntos não poderão participar em qualquer processo em que, por qualquer motivo, a sua imparcialidade possa ser posta em causa …
Aqui, o decisivo é saber se estas revelações da Vaza Jato podem ser usadas em processos criminais e de improbidade contra os membros da Lava Jato.
Atualmente, hegemonicamente, diz-se que não. Inclusive, há decisão do STF neste sentido, ministra Rosa Weber, suspendendo investigação pelo STJ, além da ilegalidade do inquérito naquela Corte, não ter sido designado pelo procurador-geral Augusto Aras (art. 18, §único, da Lei Complementar 75/93) e a prova da Vaza Jato ser ilícita (Habeas Corpus nº 198.013).
Rogo vênia para demonstrar que, ao menos parcialmente, investigação contra os procuradores da República não esbarra na ilicitude da prova.
Ocorrência rotineira, mercê de denúncia anônima no disque-denúncia, a polícia autua em flagrante o paiol de cocaína, cárcere privado do sequestrador e assim por diante.
Igualmente historicamente quotidiano, especificamente nesta área da corrupção, Folha de S.Paulo revela corrupção que então enseja processos judiciais.
Porventura já perquirido como o anônimo do disque-denúncia ou os repórteres da Folha de S.Paulo souberam dos delitos? Porventura eles também não tiveram por fonte hackers de comunicações?
Então, esta é a primeira grande distinção: inexiste ilícito na informação sobre existência de delito; o ilícito cinge-se à prova do crime.
Isto, proteção da fonte informativa de ilícitos, está em convenções internacionais subscritas pelo Brasil, bem assim consagrado na legislação pátria, Lei nº 13.608/18:
‘Art. 1º As empresas de transportes terrestres que operam sob concessão da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios são obrigadas a exibir em seus veículos, em formato de fácil leitura e visualização:
I – a expressão “Disque-Denúncia”, relacionada a uma das modalidades existentes, com o respectivo número telefônico de acesso gratuito;
II – expressões de incentivo à colaboração da população e de garantia do anonimato, na forma do regulamento desta Lei.
Art. 2º Os Estados são autorizados a estabelecer serviço de recepção de denúncias por telefone, preferencialmente gratuito, que também poderá ser mantido por entidade privada sem fins lucrativos, por meio de convênio.
Art. 3º O informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados.
Art. 4º-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista manterão unidade de ouvidoria ou correição, para assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou omissões lesivas ao interesse público.’
Parágrafo único. Considerado razoável o relato pela unidade de ouvidoria ou correição e procedido o encaminhamento para apuração, ao informante serão asseguradas proteção integral contra retaliações e isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, exceto se o informante tiver apresentado, de modo consciente, informações ou provas falsas.”
Portanto, o próprio hacker poderia enviar as conversações à ouvidoria do Ministério Público Federal, inexistindo a figura da ilicitude de informação do ilícito.
Vamos, então, à segunda grande distinção: inexiste privacidade ‘propter officium’ na interlocução entre autoridades. Ou seja, no trato do ‘munus publicum’ não há esfera de intimidade aos agentes de Estado. ‘Contraditio in terminis’ privacidade na ‘res publicae’.
Recomenda-se artigo acadêmico “Como a justiça dos EUA tratou casos de troca de mensagens entre juízes e promotores, durante julgamentos criminais”, autoria do professor (PUC/BA) Antonio Vieira.
A privacidade é sequer cogitada. Há punições severas, demissões a juízes e procuradores, sendo que o teor dos diálogos, comparados aos da Lava Jato, são ingênuos.
Sabido o “non quod est in actis non est in mundo” –o que não está nos autos não está no mundo. Por que? Simples. Porque impossível ao acusado defender-se do que não está nos autos. Isto, ônus de defender-se do que não consta dos autos, foi práxis da inquisição.
Portanto, todos os atos de Estado, interlocução das autoridades sobre o processo deveriam estar nos autos.
O que existe é segredo provisório de tutela como condição de sua efetividade (interceptação de comunicação, busca e apreensão domiciliar, prisão…). Porém, uma vez consumado, o acusado deve ter o pleno conhecimento do ocorrido.
‘Ab initio’, trombeteado a todos os rincões e exarado nas decisões da Lava Jato, a mais ampla exposição em praça pública de tudo que fosse devassado, invocando-se, precisamente que a sociedade deveria fiscalizar a atuação da Justiça.
Então, como não saber da interlocução de seus membros?
Na verdade, fez-se ‘lawfare’, guerra jurídica, escracho, linchamento moral, de forma a fazer da sentença homologação, efeito natural da prévia condenação pública, sendo o powerpoint do procurador Deltan em face do ex-presidente Lula síntese da práxis.
Lembram do repto público entre os corruptores, ambos exculpados pela delação, Marcelo Odebrecht e Joesley Batista, saber quem tinha comprado mais políticos, 500 ou 1,8 mil?
Nomes expostos, a quase totalidade sequer investigados, padeceram no limbo da infâmia. Inocência, de per si, é irrelevante. Presunção é de culpa.
Ser –-inocente, culpado, vítima, criminoso, parcial, imparcial … –é o ser percebido, diz a centenária filosofia.
Conversações da Vaza Jato explicitaram este desvio da publicidade processual, lembrando que o jornalista Reinaldo Azevedo, crítico da Lava Jato, teve criminosamente divulgada sua conversa com irmã de Aécio Neves, sabidamente para desmoralizá-lo.
A publicidade processual tem origem histórica na proteção do acusado, sob segredo condenado na inquisição. O interesse da sociedade está na conduta das autoridades e não nas vísceras dos imputados ou, ainda pior, terceiros, empresas, profissionais, trabalhadores que sequer foram investigados e tiveram vidas arruinadas pela exposição (arts. 5º, LX e 93, IX da Constituição).
‘Ad nauseam’, espezinhou-se a Resolução nº 58/2009 do Conselho da Justiça Federal – CJF. “Temendo punição, juízes vetam acesso a processos. Conduta é motivada por resolução do Conselho da Justiça Federal sobre dados sigilosos” (Folha de S.Paulo, 28/06/09).
Filósofo Roberto Romano: “O Estado moderno surge expropriando o segredo de duas instituições importantes: as corporações, onde o segredo é vital, e a Igreja. São dois elementos que integram o acervo do Estado dessa nova instituição. O Estado começa a utilizar justamente o segredo e procura saber o que ocorre na sociedade para poder, inclusive, estabelecer o seu domínio”.
Vamos, então, à terceira grande distinção: o agente de Justiça, contrariamente ao particular, tem todos os seus atos sujeitos à permanente devassa institucional.
Qual a diferença entre procurador da República e jornalista da Folha de S.Paulo que investigam idêntica corrupção?
O procurador está sob a inexpugnável reserva da lei, podendo fazer tão somente o permitido. O jornalista, precisamente oposto, pode fazer tudo, exceto o expressamente proibido. Inclusive, dispõe da imunidade/sigilo da fonte, prerrogativa inexistente ao procurador. Sigilo da fonte incompreendido por vários membros do Ministério Público, quem recalcitram em demandar jornalistas. Eles, periodistas, sim podem invocar segredo de suas interlocuções.
A essência do Estado-Justiça de direito não está em submeter o particular (cidadão, súdito, réu) às penas pela infração da lei. Antes, pressuposto da punição, está, isto sim, em ele Estado-Justiça, não mais o rei absolutista (Luís XIV: “o Estado sou eu” – tampouco a Lava Jato), mas sim imperando a soberania da lei, cumprir os ditames legais.
Como decorrência dos poderes conferidos e dever de circunscrever-se à lei, o procurador está sob permanente devassa, seja “interna corporis”, corregedoria, câmara de revisão dos processos, conselho superior, procurador-geral e, além, “extra corporis”, o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP e o Judiciário.
Aliás, rotina que o CNMP instaure investigações com base em informações da imprensa, sequer cogitando sua origem.
Portanto, sabido que inexistente a figura da ilicitude na comunicação de crime, bem assim privacidade em ato ex officio, culminando com obrigatória sujeição à devassa dos atos propter officium de procurador da República, rogando vênia ao plágio de histórico slogan da Folha de S.Paulo (“não dá pra não ler”), pergunta-se: Dá pra não investigar os desvios da Lava Jato?!
Vamos além. Precisa dos diálogos da Lava Jato pra investigar?
Igor Santiago e Conrado Gontijo explicam origem da regra de exclusão da ilicitude da prova:
“Assim também ocorreu nos EUA, berço da exclusionary rule, proclamada pela Suprema Corte somente em 1885, no caso Boyd v. United States. No caso Silversthorne Lumber Co. Inv. v. United States, de 1920, a Corte foi além para proscrever também as provas produzidas a partir de informações extraídas de provas ilícitas (fruit of the poisonous tree), a menos que: (i) possam ser obtidas de fonte independente ou (ii) devam inevitavelmente chegar ao conhecimento do Estado” (Conjur – 21.10.20)
Código de Processo Penal determina:
“Art.157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.
- 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.
- 2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.
Na Vaza Jato, igualmente configurado.
Repetindo, inexistente a figura da ilicitude na comunicação de crime (não há “nexo de causalidade”), bem assim privacidade em ato ex officio, culminando com obrigatória sujeição à devassa dos atos “propter officium” de procurador da República (“fonte independente”), tudo é sindicável.
Depoimento falso que teria sido produzido pela delegada Erika. Está nos autos. Basta confirmar ou não sua autenticidade com o pretenso depoente. Coação dos delatores, notadamente ameaça de prisão a familiares, indução a trocarem advocacia, identicamente.
Investigação clandestina contra ministros do STJ. Basta devassar as requisições, quebras de sigilo, acessos em dados pessoais e familiares na Receita Federal, Coaf inquirindo seus agentes, bem assim outros repositórios de informações, a exemplo do próprio Ministério Público, Sppea.
Igualmente, os inúmeros políticos de foro privilegiado, a exemplo dos ex-presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e Senado, Davi Alcolumbre.
Ficaria vedado pela prova ilícita tão somente no que os diálogos são essenciais à demonstração do delito quando, por exemplo, certificam o dolo de determinado ato.
O fato é que inexiste óbice da ilicitude da prova à apuração dos desvios da Lava Jato.
Há, isto sim, negacionismo institucional de seus desvios.
Apenas o procurador-geral Augusto Aras dispõe-se a levar adiante. Porém, sucumbe fragorosamente minoritário. Hegemônica e monoliticamente, atual cúpula do Ministério Público Federal opõe-se radicalmente. Seja pelo corporativismo, seja porque dantes silente com tantos atos írritos.
Então, a impunidade é inelutável. “Inês é morta”.
Rogo, tão somente, que na lápide de sepultamento desses delitos e improbidades também não seja perpetrado vilipêndio aos mortos, qual seja, pretextar a ilicitude da prova como “causa mortis”. Morta, respeitem Inês.
Nisto, agradeço penhoradamente ao icônico jornalista Frederico Vasconcelos pela cedência deste prestigiado espaço no qual, modestamente, busquei tão somente isto: epitáfio de sepultamento dos delitos da Lava Jato.