Desembargador do Tribunal de Minas Gerais vê o ‘triunfo da impunidade’
Sob o título “Triunfo da impunidade“, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Medeiros Garcia de Lima, desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (*)
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Nasci em São João del-Rei-MG, no ano de 1961. Sou da geração que viveu o ocaso do regime instaurado pelo movimento cívico-militar de 1964. Estudante de Direito, acompanhei a campanha das “Diretas Já”, em 1984. Vi nascer a “Nova República” de Tancredo Neves, em 1985. Aplaudi o Plano Cruzado, do presidente José Sarney, em 1986.
Fui promotor de justiça, em Minas Gerais (1986-1989), e sou magistrado, há quase trinta e dois anos, no estado natal.
Veio a eleição direta do presidente Fernando Collor, em 1989. Ele sofreu o impeachment em 1992. Aplaudi mais uma vez o Plano Real do presidente Itamar Franco, em 1994. E sobreveio a eleição do presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso, em 1994.
Depois, testemunhei a eleição do presidente-operário Lula da Silva, em 2002; a operação Lava Jato, do juiz federal Sergio Moro e procuradores, em 2014; e o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016.
Finalmente, o Brasil elegeu o presidente Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército, em 2018.
O tempo me ensinou que, no Brasil, nada é tão ruim que não possa piorar…
Orgulho-me de ser juiz dedicado, imparcial e independente. Respeito e sempre respeitarei o Supremo Tribunal Federal, mais alta Corte do nosso país. Portanto, é com enorme tristeza que vejo triunfar a impunidade na nossa pátria. Como sempre triunfou. E como sempre – infelizmente, creio – triunfará.
Muito frustrado, li o artigo do brilhante jornalista Carlos Alberto Sardenberg:
“Tomo emprestada a muito pertinente citação encontrada pelo advogado, jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho: “O órgão que mais falhou à República não foi o Congresso; foi o Supremo Tribunal”. É de João em “Rui, o estadista da República”, de 1937. “‘Tenho medo de que, olhando para trás, um dia façamos juízo semelhante do Supremo de agora. Antes, pelo que não fez. Hoje, pelo que está fazendo’ — acrescenta Cavalcanti Filho, em texto que pode ser encontrado em www.jp.com.br.
“Pois o professor de Direito Constitucional Joaquim Falcão provavelmente entende que o Supremo de hoje é até pior que o comentado por Mangabeira. Depois de colocar as perguntas básicas acerca das últimas decisões do STF — afinal, Lula cometeu algum crime ou agiu dentro dos preceitos legais? —, Falcão arremata: ‘O Supremo não responde. Apenas constrói respostas reflexas. Não entra no mérito. Oculta-se em debates processuais sobre competências internas. Adia o Brasil. Nossa economia. Os investimentos. Nossa democracia. A normalização política’. (‘O Estado de S. Paulo’, 23/04/21).
“Mas, além de se esconder em firulas processuais (como já comentamos aqui), alguns ministros do STF, quando entram no conteúdo, apresentam teses estapafúrdias” (A culpa é do STF, O Globo, 24.04.2021).
Em um momento como esse, temos de citar o grande jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni:
“(É) tão política a questão judiciária que, praticamente, a Revolução Francesa foi desdobrada contra o poder arbitrário dos juízes, mais do que contra o poder monárquico” (Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos, 1995, p. 79).
Entristecido, ouço no meu entorno – e leio nas redes sociais – críticas duras ao Judiciário brasileiro. Merecidas críticas.
Assusta-me a prepotência das instâncias superiores, quando atacam a conduta dos juízes de primeiro grau. E transcrevo novamente Zaffaronni:
“Na prática, a lesão à independência interna costuma ser de maior gravidade do que a violação à própria independência externa. Isso obedece a que o executivo e os diversos operadores políticos costumam ter interesse em alguns conflitos, em geral bem individualizados e isolados (salvo casos generalizados de corrupção, ou seja, de modelos extremamente deteriorados), mas os corpos colegiados que exercem uma ditadura interna e que se divertem aterrorizando seus colegas, abusam de seu poder no cotidiano. Através deste poder vertical satisfazem seus rancores pessoais, cobram dos jovens suas frustrações, reafirmam sua titubeante identidade, desenvolvem sua vocação para as intrigas, desprendem sua egolatria etc., mortificando os que, pelo simples dato de serem juízes de diversa competência, são considerados seus ‘inferiores’. Deste modo, desenvolve-se uma incrível rede de pequenez e mesquinharias vergonhosas, de que participam os funcionários e auxiliares sem jurisdição” (ob. cit., p. 88-89).
Eu já sonhei ver implantada, entre nós, uma Justiça semelhante à da Grã-Bretanha. Joaquim Nabuco – o grande político, diplomata e abolicionista do século 19 – admirava a magistratura britânica:
“Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes (…). Só há um país no mundo em que o juiz é mais forte do que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais que tudo, à imprensa, à opinião. (…) O Marquês de Salsbury e o Duque de Westminster estão certos de que diante do juiz são iguais ao mais humilde de sua criadagem. Está é a maior impressão de liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos, ou de pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da dignidade anglo-saxônica” (Minha Formação, Editora UnB, 1985, p. 85).
Quando era mais jovem, eu me revoltava e tinha disposição para lutar. Agora, perdi de vez a esperança. Temos de investir nas novas gerações de brasileiras e brasileiros e nas novas gerações de magistradas e magistrados. Nossos filhos, filhas, netos e netas. A geração atual falhou. O Supremo Tribunal Federal falhou. Todos falhamos muito. O atraso é enorme!
Serve o alerta de Rudolf von Ihering:
“Qualquer norma que se torne injusta aos olhos do povo, qualquer instituição que provoque seu ódio, causa prejuízo ao sentimento de justiça, e por isso mesmo solapa as energias da nação. Representa um pecado contra a ideia do direito, cujas consequências acabam por atingir o próprio Estado. (…) Nem mesmo o sentimento de justiça mais vigoroso resiste por muito tempo a um sistema jurídico defeituoso: acaba embotando, definhando, degenerando” (A luta pelo direito, Editora Rio, p. 94-95).
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(*) O autor é Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor universitário. O artigo foi publicado originalmente no jornal Inconfidência, de Belo Horizonte)