O advogado que amava alvarás de soltura
Em tempos de insegurança jurídica, turbulência política e descaso oficial com a pandemia, a Covid-19 causou a morte do advogado criminalista Bóris Trindade, que se dedicou a defender presos políticos, na ditadura militar, em Pernambuco.
Ele morreu no último sábado (5), no Recife, aos 85 anos.
Em nota, a OAB-PE diz que Bóris Trindade “é, e continuará sendo uma referência para a advocacia pernambucana”. “Nos deixa uma lacuna enorme, mas também um grande legado de defesa firme e vigorosa dos direitos fundamentais”.
Seu filho Eduardo Trindade, também advogado, escreveu no Diário de Pernambuco:
“Foi um árduo defensor da liberdade, das garantias individuais e do Estado Democrático de Direito, tendo atuado com firmeza na defesa de presos políticos nos ‘tempos de chumbo’.
Bóris Trindade, costumava se intitular: advogado, ponto.
Quando o convidavam para uma palestra e pediam o currículo dele, ele mandava assim: Bóris Trindade, advogado.
E quando insistiam pedindo os títulos, medalhas e quejandos, ele dizia com muito orgulho: sou só advogado!”
De família de jornalistas, Bóris formou-se em 1960 na Faculdade de Direito do Recife. Também foi produtor de teatro e ator eventual. Teve um circo, na infância.
Foi jornalista durante dez anos. Fez crônica social, reportagem policial, crítica de cinema e teatro, editorial e até horóscopo.
Eduardo diz que o pai “não tinha alegria maior do que obter um alvará de soltura, que era o ‘amor’ dele no livro que escreveu”, em 1983 [“Alvará de Soltura, Meu Amor“, com segunda edição lançada em 2018 pela Unacrim – União dos Advogados Criminalistas].
O presidente da Unacrim, Carlos Barros, diz na apresentação do livro que Bóris “tem como etiqueta marcante uma singular espirituosidade, revelada nas suas ‘tiradas’ ágeis e fulminantes, ora refinadíssimas, ora escrachadas, mas sempre forjadas na sua vasta bagagem literária e humanística”.
O desembargador Roberto Wanderley Nogueira, seu amigo, diz que Bóris, “escritor de pena leve, deixou verdadeiros tratados poéticos em honra do seu ofício, o qual exercia com total maestria e dignidade irreprochável”.
“‘Alvará de Soltura, Meu Amor’ tornou-se um clássico da crônica forense entre nós e uma ode à Advocacia”, diz Nogueira.
Na orelha do livro, o jornalista Waldimir Maia Leite assim introduz o autor:
“Aqui se flagra um homem da lei, desviado do jornalismo.”
O Blog selecionou esta crônica sobre sua primeira atuação na defesa de presos políticos:
***
O pedido do poeta e o início de tudo
O Palácio do Governo, seguramente, não era o meu lugar, na primeira semana do Golpe Militar.
Ali estava eu, indicado pelo advogado José David Gil Rodrigues, ao então governador Paulo Guerra, para oficial de gabinete.
Quando cheguei em casa, vários recados me aguardavam depois de exaustiva caminhada por algumas cidades do interior. E o convite estava aceito.
Abril de 1964: senti que ali não era meu lugar.
Um dia, o poeta Edson Régis, então secretário do Governo, me pediu para defender dois presos políticos, um dos quais, Maria Celeste Vidal, militante das Ligas Camponesas, organismo onde atuei como advogado, durante muito tempo, chamado que fui por Francisco Julião.
Foi a minha primeira causa política. Com ela, o motivo decisivo para que deixasse o Palácio do Campo das Princesas.
Também começava ali a ser gerada a ideia de como se desenvolviam os processos jurídico-militares.
Conselho composto de oficiais do exército.
Iniciada a audiência, interrogados os réus do processo –como determinava o então Código de Justiça Militar– argui a incompetência castrense sob a alegação de que não se tratava de crime militar, coisas assim.
– Portanto, esse Conselho é incompetente.
Nem bem terminei, e o seu presidente, aborrecido:
– Incompetente é V.Excia.!…