Tribunal coloca em disponibilidade juiz que solicitava doações a tabeliã

O Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou, no último dia 5 de maio, a pena de disponibilidade, com vencimentos proporcionais, ao juiz André Gonçalves Fernandes, da Comarca de Sumaré (SP), por fatos que caracterizariam violação a deveres funcionais e éticos. O magistrado poderá eventualmente retornar ao cargo depois de dois anos.

O procedimento administrativo disciplinar foi instaurado por deliberação do Órgão Especial em 28 de agosto de 2019. Por unanimidade, o colegiado rejeitou a defesa prévia do magistrado. O processo disciplinar teve origem em representação de um ex-juiz de direito daquela comarca.

Naquela ocasião, o atual presidente Geraldo Francisco Pinheiro Franco, então relator e corregedor-geral, disse que “as imputações são graves e comprometem a imagem do Judiciário”. O atual relator é o desembargador Francisco Antonio Casconi.

A aplicação da pena foi decidida por por maioria de votos, em sessão do Órgão Especial, em maio. Os desembargadores Cristina Zucchi, Jacob Valente e Torres de Carvalho votaram pela aplicação da pena de remoção compulsória.

Foi imputado ao magistrado –que exercia a função de corregedor permanente– as seguintes ocorrências:

a) reiteradas solicitações, a delegatários do serviço extrajudicial, de doação de equipamentos para utilização na unidade judiciária (inclusive mediante contribuições financeiras por meio de sua conta corrente pessoal);

b) solicitação de compra de aparelho de ar-condicionado em nome do primo, empregado de fabricante o produto, para obtenção de desconto;

c) compra de objeto de uso pessoal (armação de óculos de grau, no valor de R$ 3.100,00, pago por uma tabeliã) a título de doação, com envio de boleto a delegatária do serviço extrajudicial;

d) solicitação de pagamento de viagem do juiz e de sua mulher (fato do conhecimento de testemunhas, embora a viagem não tenha sido concretizada);

e) pronta expedição de alvarás para o levantamento de valores pertencentes ao espólio da antiga delegatária do registro de imóveis de Sumaré (inexistência de abertura de inventário na ocasião).

Sustentação oral

Fizeram sustentação oral em defesa do juiz os advogados Braz Martins Neto e Adib Sad.

Martins Neto disse que o magistrado não teve uma única mácula em sua carreira, atuou numa vara com absoluta pontualidade, tendo convívio harmonioso com a comunidade jurídica.

Disse que a irmã da antiga delegatária do registro de imóveis –nomeada para exercer interinamente o cargo de oficial do registro de imóveis– elegeu o juiz como seu inimigo.

Sobre a alegada viagem, disse que foi uma acusação “absolutamente leviana”. “Não há uma única prova da existência do fato, o juiz não viajou, não houve emissão de passagens. É fruto de uma fantasia organizada para prejudicar e retaliar” o magistrado, afirmou.

Quanto ao episódio do óculos, disse que, no momento, o juiz “passava por profunda depressão com a morte de seu pai e de um ex-diretor de cartório”. Mencionou ainda o abalo que lhe causou o fato de um filho ter agredido a esposa, o que gerou um processo.

O advogado Adib Sad destacou a “excelente formação do magistrado”, que recebeu vários prêmios e é autor de cinco livros, 17 ‘papers’ acadêmicos e mais de 600 artigos publicados. (*)

O juiz André Gonçalves Fernandes é graduado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre e Doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. É membro da Academia Campinense de Letras e do Movimento Magistrados pela Justiça.

“É uma pessoa proba. Não se trata da figura que foi descrita na acusação”, afirmou Sad.

Defesa escrita

A defesa escrita do magistrado postulou a oitiva de 24 testemunhas. Discorreu sobre o histórico profissional e sua atuação na comarca de Sumaré. O juiz informou ter exercido a direção do fórum local entre 2005 e 2011, ostentando boa imagem perante a opinião pública.

Afirmou que os pleitos de doação nunca foram “impositivos ou sob ameaça”. O propósito era a melhoria do serviço público judicial. Disse que houve a incorporação formal dos bens ao patrimônio estatal, e que eram comuns os pleitos de doação, inclusive antes de sua atuação na comarca, “dada a precariedade da estrutura local”.

Sobre o ar-condicionado, afirmou que propôs a aquisição por meio de um parente para reduzir o custo ao tabelião. “O que não se concretizou, tendo o doador adquirido o aparelho às suas expensas e por livre vontade”.

No caso do óculos, justificou o equívoco do envio de boleto particular à delegatária, ao invés do referente à aquisição de um triturador de papel; Alegou problemas de saúde enfrentados nos últimos 18 meses. Afirmou que, ao constatar o engano, propôs o ressarcimento à tabeliã, que não teria aceito.

“Inusitada, para dizer o menos, a postura do magistrado ao descobrir o equívoco somente meses após a aquisição e, ao que parece, posteriormente ao início do procedimento preliminar”. Não efetuou a restituição da verba, registra o relator em seu voto.

Sobre a viagem com a mulher, o juiz negou a solicitação e disse que não fez viagem ao exterior em 2013. Argumentou ainda com a ocorrência de prescrição. Sobre a expedição de alvarás, alegou que foi solicitada pela irmã da falecida delegatária.

A Procuradoria-Geral de Justiça opinou pela aplicação da pena de disponibilidade.

O relator registrou que, “como foi consignado ao final da audiência de interrogatório do magistrado, a condução do procedimento foi marcada pela seriedade, lhaneza, respeito mútuo e efetiva participação das partes em seu transcorrer”.

Consignou, ainda, “o reconhecimento proveniente da comunidade jurídica local em prol do magistrado, destacando seu prestígio profissional como representante do Poder Judiciário, notadamente por sua dedicação e eficácia no desempenho da prestação jurisdicional”.

O TJ-SP conferiu o Certificado de Unidade Judicial Eficiente ao fórum local, enquanto o magistrado exercia a direção do órgão (2005 a 2011).

Exame técnico

Para o relator Francisco Antonio Casconi, operosidade, dedicação e eficácia, respeito e lhaneza “devem sempre integrar a postura de todo magistrado, do início ao transcurso da carreira que abraçou por vocação”. O desembargador afirmou ter feito um “exame impessoal e técnico das imputações.

Disse que a tese defensiva sempre convergiu buscando minimizar os efeitos deletérios das solicitações. A defesa “refutou o caráter impositivo e constrangedor dos pedidos”.

Segundo o relator, “as ‘solicitações’ de doações aos delegatários do serviço extrajudicial eram recorrentes, sem qualquer transparência e marcadas pela realização de pedidos informais –via WhatsApp, ou em conversas repentinas e inoportunas, englobando até mesmo o pleito de transferência de valores– promovidas pelo magistrado, na especial circunstância de corregedor permanente dos respectivos serviços extrajudiciais”.

Os autos registram “valores monetários enviados por meio de sua própria conta pessoal”.

Segundo Casconi, “a reiteração das solicitações demonstra o pretenso estabelecimento de verdadeiro fluxo sistemático de doações, sob a perigosa influência de uma relação de fiscalização”.

O relator cita trechos do depoimento de ex-juiz da Comarca, “que revelam o incômodo dos delegatários, inclusive receosos pela possibilidade de questionamento de suas condutas”.

Uma tabeliã destacou o medo “velado” em razão de o magistrado ser seu corregedor permanente. Ela declarou que “em várias oportunidades apenas acatava os pedidos sem maiores questionamentos, mesmo porque receava o que poderia ocorrer em caso de negativa”.

“Os delegatários muitas vezes pouco sabiam a respeito dos boletos que eram encaminhados para quitação, bem como a circunstância de não tomarem conhecimento acerca da destinação e efetiva incorporação dos bens doados ao patrimônio público”.

Sobre os aparelhos de ar-condicionado, o relator registra que “até a corrente data, curiosamente não estão em funcionamento e sequer instalados”.

“Ainda que se vislumbre não ter ocorrido a viagem, o ilícito disciplinar resta caracterizado pela mera solicitação indevida e suficientemente comprovada”, afirmou.

Sobre essa “conduta reprovável do magistrado”, o Ministério Público anotou que o ocorrido assumiu “um certo caráter folclórico na Comarca, já que diversas pessoas manifestaram ter ouvido relato sobre os fatos”.

O juiz destacou a relevante existência de inimizade entre ele e a irmã da falecida delegatária –que exerceu interinamente o cargo de oficial do registro de imóveis.

“Apesar dos registros lançados em relação ao proceder da irmã da delegatária falecida, além de ter sido mantida como interina, gozou de plena confiança do magistrado para pronto deferimento dos alvarás”.

Sobre os “alvarás autônomos”, o relator registra que “realmente não estão vinculados a qualquer feito judicial e foram expedidos, ao que se colhe das circunstâncias dos autos, à base da informalidade, sem o devido registro e autuação”.

“A repercussão das condutas, analisadas em conjunto, assume gravidade singular que, inclusive, justificou o afastamento cautelar do magistrado no momento da instauração do PAD, e não cede espaço a cogitações sobre penalidades mais brandas (advertência e censura), sendo ainda irrelevante a ausência de sanções anteriores em seu histórico disciplinar ou seu reconhecido e elevado grau cultural”, votou o relator.

“A pena de remoção, a meu ver, representa espécie de sanção inadequada”, disse.  “As imputações apuradas não expõem como causa proeminente algum vínculo deletério do magistrado na comarca de Sumaré, mas sim condutas por ele instituídas que abalam as raízes do próprio cargo que ostenta.”

Por essas razões, o relator votou pela pena de disponibilidade com vencimentos proporcionais.

Declaração de voto

Em declaração de voto, o desembargador Torres de Carvalho entendeu que o contexto das condutas “precisa ser mais bem delineado”, havendo detalhes que devem ser considerados:

1. Os pedidos de doação “não foram isolados, no sentido de que não se trata de uma prática restrita à época em que atuava como juiz corregedor permanente”. “Eram habituais, naquela e em várias comarcas, envolvendo uma ajuda não só dos oficiais das serventias extrajudiciais, mas também dos próprios magistrados, servidores, da OAB, das prefeituras, empresas e outros setores para melhoria das condições de trabalho na unidade judiciária , em prol do Judiciário Paulista”.

2. O juiz não percebeu (um erro conceitual) que a frequência e insistência de pedidos de doação estavam constrangendo o novo registrador oficial.

3. O juiz entendia estar fazendo um pedido que podia ser recusado.

4. Os valores dos bens solicitados a título de doação eram, no geral, pequenos. “Não há indícios de desvio de qualquer um dos bens ou valores doados”.

5. “De toda a instrução probatória, inclusive no âmbito preliminar, não há reclamação em relação ao juiz. Ao contrário, há elogios ao trabalho do magistrado, “cujas melhorias ao longo dos anos são a ele atribuídas, recebendo o Certificado de Unidade Judicial Eficiente pelo tribunal”.

Torres de Carvalho afirmou: “É seguro afirmar que o juiz André Gonçalves Fernandes, até o início da apuração preliminar, não tinha ciência do incômodo e do constrangimento que os pedidos de doação passaram a causar aos destinatários”.

“Mas os demais fatos referentes à solicitação de uma viagem à antiga tabeliã, já falecida, e à expedição de alvarás judiciais relacionados aos bens deixados, mediante pedidos formalizados pela irmã e tabeliã interina, desvinculados de qualquer feito judicial, justificam uma punição mais grave”.

“A remoção compulsória é a sanção mais compatível com a situação do interessado”, afirmou. “Não há condições do juiz André continuar atuando na mesma Vara ante a situação instalada”.

Consultado pelo Blog, o advogado Braz Martins Neto não quis comentar o julgamento. Declarou-se impedido por se tratar de sigilo de justiça.

(*) O juiz André Gonçalves Fernandes é autor dos seguintes artigos publicados neste Blog:

Um golpe de mestre contra a Constituição“, em 7 de setembro de 2016 e “Juiz contesta ideias de Toffoli sobre toga imatura“, em 6 de novembro de 2018.