Combate à corrupção sistêmica requer um tribunal internacional, afirma juiz
“A investigação e o processamento da corrupção têm sido lentos por conta de um sistema judicial tímido e inoperante, que permanece intocável (mesmo com a futura reforma do Código de Processo Penal), que muitas vezes consagra uma doutrina criminal equivocada, que se alicerça no garantismo exacerbado, passando mensagem de tolerância a certo nível de violação ética.”
A avaliação é de Fausto Martin De Sanctis, juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Neste artigo, sob o título “Tribunal Internacional Anticorrupção Já!“, o autor afirma que a luta contra a corrupção requer um trabalho de coprodução: “A prevenção e o combate efetivo da criminalidade econômica, no Brasil, parecem que apenas vingarão, de fato, com a efetivação de um Tribunal Internacional Anticorrupção, que já possui o apoio de mais de 100 líderes mundiais”.
“Um estado corrupto pode levar seu povo às mãos de extremistas farsantes e embusteiros”, afirma De Sanctis.
Eis a íntegra do texto (*):
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O Brasil encontra-se impactado pela forma rápida com que a Câmara dos Deputados aprovou, bem ainda pelo conteúdo de algumas alterações propostas pelo Projeto de Lei n.º 10.887/2018, que modifica a Lei n.º 8.429, de 02.06.1992 (Lei de Improbidade Administrativa), a ser apreciado no Senado.
Sempre defendi a criação de uma Corte Internacional Anticorrupção para o enfrentamento da corrupção, que é sistêmica no país. Este crime tem se tornado um problema global porquanto muitos líderes e seus apoiadores, em todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), têm tido certa facilidade em sua perpetração, devastando os direitos humanos, a saúde pública, a paz internacional e a segurança.
A corrupção está atrofiando economias e fazendo com que muitos tentem migrar para países desenvolvidos, principalmente porque a desesperança triunfou, notadamente quando parte de juízes revela-se como fator-chave para a manutenção do status quo.
Veja o seguinte exemplo. Um juiz na Argentina foi acusado de liderar uma rede de corrupção que incluía advogados e um ex agente oficial da alfândega. E este não é um caso isolado envolvendo juízes federais em esquemas de corrupção.(1)
De acordo com o “United States-based Cyrus R. Vance Center for International Justice”, na América Latina, o Brasil encontra-se em quarto lugar no ranking sobre corrupção, atrás, pela ordem, de Chile, Argentina, Peru, sendo seguido por Colômbia e México. Ou seja, a Argentina, mergulhada em vários escândalos, estaria melhor avaliada que o Brasil.(2)
Na China, a grande corrupção estaria envolvida nas privatizações de terras e de empresas estatais. Em teoria, a terra continua a pertencer ao estado, mas, na prática, poder usá-la por várias décadas produz equivalentes efeitos que ser o detentor da propriedade.
A prática de alocar terras para empresas imobiliárias, minas para empresários privados e estatais para investidores privados gerou naquele país (e na Rússia pós-soviética, embora com diferenças) enormes transferências de dinheiro. Muitas vezes estas são tortuosas, ilegais e projetadas para enriquecer certos empresários, e são decididas por oficiais de alto escalão do Partido Comunista Chinês – PCC que, segundo os estudos, permaneceram intocados pelas campanhas anticorrupção de Xi Jinping.(3)
A corrupção é, de fato, um mal em franco crescimento, tendo como maiores vítimas os mais pobres. Tal crime seria como a Covid-19: veio para ficar e exige todos os esforços para reduzi-la ao mínimo. Trata-se, contudo, de um mal desnecessário, tendo o Banco Mundial estimado em 1 trilhão de dólares pagos em propina indevidamente por ano.(4)
A cleptocracia não floresce por conta de ausência de leis, mas pelo fato de os cleptocratas controlarem a administração pública em sentido amplo, inclusive a administração da justiça, nos países em que exercem a liderança, fazendo que nações inteiras sejam vitimadas. Por isso, faz-se urgente criar um mecanismo que responsabilize a todos. Em 2 de junho último, os Ministros das Relações Exteriores do G7 declararam que “reconhecem que a corrupção é um desafio global urgente.”(5)
Em 3 de junho, o presidente Joe Biden emitiu um Memorando estabelecendo a luta contra a corrupção como um interesse central da segurança nacional dos EUA. Ele declarou:
“A corrupção corrói a confiança do público; atrapalha a efetiva governança; distorce os mercados equitativos; enfraquece os esforços de desenvolvimento; contribui para a fragilidade nacional, extremismo e migração e fornece aos líderes autoritários um meio de minar a democracia em todo o mundo.”(6)
De fato, o presidente citado liderou, então como vice-presidente dos EUA, na administração Barack Obama, a luta contra a corrupção e a cleptocracia, e jurou, ao assumir a presidência, fazer desta o seu foco, sua prioridade. Criou um registro obrigatório do beneficiário final no “National Defense Authorizaction Act”, inibindo o registro anônimo de empresas de fachada(7), além de incluir regulação de criptomoedas para reduzir o segredo das operações offshore.(8)
A criptomoeda pode facilitar a corrupção pelo fato de ter como característica a descentralização, permitindo transações ponto a ponto (“peer-to-peer networks”), de forma independente e sem supervisão de terceiros (chamada de tecnologia de “blockchain”).
Segundo o professor australiano Ronald F. Pol, da “La Trobe Law School”, as normas existentes sobre o combate à lavagem de dinheiro pouco impactaram as ações ilegais, já que 99,8% destas passam livremente sem detecção dos controles estatais(9), o que demanda a adoção de medidas eficazes na luta contra a criminalidade econômica.
A corrupção elevada existe porque culturalmente as vítimas não têm sido levadas em consideração. São frequentemente esquecidas e vistas como disponíveis já que o importante, na visão deturpada, seria lidar apenas com o crime e o criminoso.
Jim Richards, um ex-diretor de área de combate à lavagem de dinheiro do Wells Fargo e outros grandes bancos, afirmou que “qualquer coisa que possa ser consertada com o dinheiro não é um problema”(10) para a criminalidade economico-financeira.
A proposital inabilidade institucional para tratar com exatidão o problema é corrente e objeto de reforço por boa parte da elite criminosa. A pressão que se faz sobre as autoridades para acabar ou reduzir as brechas legais tem tido efeito contrário em nosso país (e em outros), daí porque o problema deve ganhar uma dimensão global, que trate do choque entre sociedades realmente baseadas na teoria do Estado de Direito e as cleptocracias ou os países facilitadores de delitos e do ambiente criminoso.
Na verdade, muitas iniciativas, como, por exemplo, a alteração do novo Código de Processo Penal – CPP (PL 8045/2010), partem de ideias romanescas, irreais ou preconcebidas, mas, com o pretexto de imprimir celeridade e justeza aos processos criminais, propõem alterações com medidas que contrariam as expectativas da sociedade em ver um processo enxuto, célere e eficaz.
Não abordam, com efeito, as verdadeiras questões processuais de fundo e que deveriam merecer atenção (recursos repetitivos e desnecessários, sistema persecutório burocrático, exacerbado sistema de nulidades etc.), limitando sensivelmente a possibilidade de investigação do Ministério Público; alterando o foro por prerrogativa de função para torná-lo mais burocrático e amplo, e estabelecendo limite fictício do tempo de prisão preventiva (180 dias antes da sentença).
Além disso, tratam sobre competência criminal, não prevendo qualquer possibilidade de ratificação dos atos inicialmente investigados por outro magistrado, o que reforça a decretação de nulidades, bem ainda que as cautelares apenas seriam possíveis quando “absolutamente indispensáveis” (com alta margem subjetiva de interpretação), criam o instituto de investigação paralela aos inquéritos policiais por parte da defesa (“Investigação Defensiva”), tumultuando o sistema acusatório constitucional, além de restaurar a ideia de juiz de garantias (burocrático e estabelecedor da quinta instância no Brasil).
Por outro lado, mesmo sabedores da necessidade de fazer cumprir ou executar ações durante violações potenciais ou reais, com medidas até de prisão e bloqueio de bens e que reduzam as lacunas legais, as iniciativas para coibir a corrupção e a lavagem de dinheiro são direcionadas prioritariamente às instituições financeiras e pouco focam nas empresas e nos indivíduos envolvidos em transações não financeiras. Não se fala em crime de corrupção privada.
Pessoas, no Brasil, parecem ter ido, em vão, às ruas desde 2013 cansadas de tanto flagelo. Deram início a uma libertação cognitiva: o povo coletivamente percebeu que tem poder e voz. Boa parte dos brasileiros comemorou a prisão de políticos e empresários pelo fato de desejar a aplicação equitativa do Estado de Direito. Entretanto, apesar de estarmos mais vigilantes, as respostas continuam sendo carreadas com cinismo, egocentrismo, compadrio e autoproteção.
A investigação e o processamento da corrupção têm sido lentos por conta de um sistema judicial tímido e inoperante, que permanece intocável (mesmo com a futura reforma do CPP), que muitas vezes consagra uma doutrina criminal equivocada, que se alicerça no garantismo exacerbado, passando mensagem de tolerância a certo nível de violação ética.
Se se deseja a efetividade do combate à corrupção, isto somente será possível com um sistema judicial efetivo, que não abarque extremos. Os defensores desse garantismo, concebido à moda brasileira (“Doutrina Criminal Brasileira”, por ser única), afastam-se da razoabilidade e acabam por retroalimentar o falido sistema processual, promovendo constantes retrocessos.
A luta contra a corrupção requer um trabalho de coprodução. É parte dos direitos humanos já que lida com todos eles (educação, alimentação, meio ambiente, saúde, segurança etc.) e necessita, mais que urgente, de uma ação internacional. A prevenção e o combate efetivo da criminalidade econômica, no Brasil, parecem que apenas vingarão, de fato, com a efetivação de um Tribunal Internacional Anticorrupção, que já possui o apoio de mais de 100 líderes mundiais – incluindo ex-Chefes de Estado e de Governo, funcionários governamentais e intergovernamentais atuais e anteriores e representantes da sociedade civil, empresas e comunidades religiosas – de mais de 40 países. (11)
Um estado corrupto pode levar seu povo às mãos de extremistas farsantes e embusteiros.
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(*) Publicado originalmente no blog de Fausto Macedo (Estado de S. Paulo)
1. Insight Crime website. Corruption Plagues Argentina’s Justice System, in https://insightcrime.org/news/corruption-plagues-argentinas-justice-system/, publicado em 18.05.2021, acessado em 18.06.2021.
2. Mexico News Daily website, Mexico scores poorly on anti-corruption assessment, in https://mexiconewsdaily.com/news/mx-scores-low-on-anticorruption/, publicado em 18.05.2021, acessado em 18.06.2021.
3. INTROVIGNE, Massimo. Bitter Winter website. Corruption in China: Worse Under Xi Jinping, in https://bitterwinter.org/corruption-in-china-worse-under-xi-jinping/, publicado em 11.05.2021, acessado em 18.06.2021.
4. MCCAW, Henry. Fair Observer website. Corruption, na Unnecessary Evil, in https://www.fairobserver.com/business/henry-mccaw-corruption-self-regulation-anti-bribery-mechanism-technology-news-12188/, publicado em 06.05.2021, acessado em 18.06.2021.
5. Integrity Initiatives International website. Declaration in Support of the Creation of na International Anti-Corruption Court. 100-plus World Leaders Call for An International Anti-Corruption Court, in https://www.businesswire.com/news/home/20210610005247/en/100-plus-World-Leaders-Call-for-An-International-Anti-Corruption-Court, publicado em 10.06.2021, acessado em 18.06.2021.
6. BIDEN, Joe. The White House website. Memorandum on Establishing the Fight Against Corruption as a Core United States National Security Interest, in https://www.whitehouse.gov/briefing-room/presidential-actions/2021/06/03/memorandum-on-establishing-the-fight-against-corruption-as-a-core-united-states-national-security-interest/, publicado em 03.06.2021, acessado em 18.06.2021.
7. Veja Foreign Policy, Biden Expected to Put the World’s Kleptocrats on Notice, in https://foreignpolicy.com/2020/12/03/biden-kleptocrats-dirty-money-illicit-finance-crackdown/, publicado em 03.12.2020, acessado em 16.06.2021.
8. Financial Times. Biden administration targets crypto transfers in tax crackdown plan, in https://www.ft.com/content/09112208-08ce-40a1-8e50-9152f1ba03d9, publicado em 20.05.2021, acessado em 18.06.2021; Bloomberg, in Biden Targets Crypto Tax Evaders in Global Data-Sharing Pitch, in https://www.bloombergquint.com/politics/biden-targets-crypto-tax-evaders-in-global-data-sharing-pitch, publicado em 03.06.2021, acessado em 18.06.2021.
9. Ledger Insights Website. Anti money laundering has less than 1% impact on crime. At what cost?, in https://www.ledgerinsights.com/anti-money-laundering-has-less-than-1-impact-on-crime-at-what-cost/, publicado em 25.09.2020, acessado em 18.06.2021.
10. STONE, Peter. How America Became the Money Laundering Capital of the World, in https://newrepublic.com/article/162321/america-money-laundering-capital-fincen, publicado em 07.05.2021, acessado em 18.06.2021.
11. Integrity Initiatives International website. Declaration in Support of the Creation of na International Anti-Corruption Court. 100-plus World Leaders Call for An International Anti-Corruption Court, in http://www.integrityinitiatives.org/, publicado em 10.06.2021, acessado em 18.06.2021.