Bolsonaro é ‘o inimigo nefasto da democracia’, afirmam magistrados
“É preciso que todos aprendam com o passado recente a não mais transigir com as regras democráticas (…), a não flexibilizar garantias constitucionais de caráter social e político que deram na abertura de portas, na oportunidade para o surgimento de falsos mitos e inimigos declarados da democracia”, afirmam os juízes Germano Siqueira e João Ricardo Costa, no artigo abaixo, sob o título “O inimigo nefasto da democracia”. (*)
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Tornou-se comum, a partir de 2019, conviver no Brasil com um presidente da República eleito que, além de suas conhecidas precariedades pessoais, pratica, como método, o negacionismo científico, histórico e político, abusando do menosprezo real e simbólico por minorias, do deboche com adoecidos e mortos pela Covid-19, da truculência verbal para ofender as mulheres jornalistas, e da mentira sistêmica para estimular o que há de pior nas práticas institucionais, desrespeitando abertamente compromissos constitucionais que lhes são impostos.
Em maré-montante, da retórica espúria o presidente da República avança para um explícito projeto totalitário e a prova disso são os repetidos ataques às instituições democráticas que, no ano passado, já contaram com a sua inconcebível presença em manifestações em frente ao Palácio do Planalto, nas quais se pedia o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
Agora, ao tempo em que a CPI da Pandemia cogita sérios desvios de conduta Governo na compra de vacinas, recrudesce o ânimo autoritário do presidente da República em uma versão ainda mais incabível, voltando sua fúria doentia contra a honra dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, agredindo não só esses magistrados, mas todos os demais ministros, inclusive com uso vulgar de palavrões veiculados em suas redes, afrontando objetivamente a reputação da Suprema Corte e a independência judicial.
Essas agressões e afrontas objetivam gerar tensionamento, fora dos limites constitucionais, para dar suporte à produção de conteúdo desinformativo a ser veiculado nas redes disseminadoras de ódio e fake news que atuam orgânica e ideologicamente em torno do senhor Jair Messias Bolsonaro, de modo a plantar entre os seus seguidores e entre determinados segmentos da população os falsos paradigmas de uma realidade paralela que se baste, criminosamente, a forjar caminhos para a construção de um cenário de instabilidade institucional calcada na descrença nas regras da democracia como instrumento para a consecução de um regime totalitário por ele almejado.
Esses atos, além de ofensivos ao STF e pessoalmente aos seus ministros, só não atingem a imagem do Poder Judiciário e da Justiça Eleitoral brasileira perante a comunidade internacional porque a palavra do atual presidente do Brasil, mundo-afora, não tem a menor credibilidade, quer por suas opções, parcerias e identidade originária com o que há de mais obtuso e autoritário, quer pela sequência de fake news lançadas pelo atual mandatário brasileiro até mesmo em eventos oficiais, para vergonha nativa, como ao mentir e distorcer informações em pelo menos 15 vezes no mesmo discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, ocorrido no dia 22/9/2020, conforme pesquisa realizada pela agência de fact-checking “Aos Fatos”.
O que não se pode deixar de registrar, no entanto, é que a quantidade de crimes comuns e de responsabilidade praticados pelo atual presidente (e a Representação do TSE no Inquérito das fake news relata apenas alguns deles), fazendo parte de um conjunto de ataques gravíssimos contra a democracia, são ainda mais inaceitáveis quando sequenciados por repetidas e intensificadas falas de um presidente que insinua preparar-se para fechar as portas do Congresso, do STF e banir garantias constitucionais com a força das armas do “meu exército” para se autoentronizar como um desqualificado tirano.
Nesse cenário, no que vem a ser o momento de maior gravidade e risco para a democracia desde o processo constituinte, impressiona que, por injustificáveis omissões do senhor procurador-geral da República, não tenham sido providenciadas, até agora, as ações penais pertinentes, que deveriam ser formalizadas de pronto, tendo escolhido o PGR alienar-se de seus deveres indeclináveis, abstendo-se de agir como sujeito fundamental do sistema acusatório em face da mais alta autoridade da República, ao mesmo tempo em que, omisso, abandonou até aqui o dever de assegurar à Suprema Corte as suas garantias institucionais, deixando-a à própria sorte, em estado de ameaça e golpe, sob ônus de exercer os instrumentos de autoproteção de que dispõe, optando o PGR, com seu eloquente silêncio, por dar sinais permissivos ao presidente da República de prosseguir nessa aventura contra a democracia.
Não menos omissa, tendo em vista o atual panorama, tem sido a presidência da Câmara dos Deputados, sob o comando do deputado Arthur Lira, ciente dos inconcebíveis ataques à ordem política e institucional, perpetrados pelo presidente Bolsonaro, e, notadamente, da existência dos mais de cem pedidos de impeachment lastreados em fatos gravíssimos que o chefe do Executivo insiste em reincidir, dia após dia, não podendo o Poder Legislativo “blindar” aquele que reitera os mesmos discursos e promessas de movimentos totalitários, exonerando-se de sua função precípua que é a salvaguarda do regime democrático, mesmo que para tanto precise lançar mão de remédio constitucional extremo contra os que agem fora das balizas democráticas.
Na verdade, o voto em urnas eletrônicas no Brasil é tão seguro que já elegeu o atual presidente (em uma situação considerada improvável meses antes), e também presidentes de perfis distintos como Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. Além disso, esse mesmo modelo de urna, sem nenhum sobressalto tecnológico, assegurou anteriormente vários mandatos de deputado federal ao atual presidente e mandatos de senador, deputado federal e vereador aos seus filhos, sem contar que o atual Congresso é um dos mais conservadores de todos os tempos e espelha as escolhas no último período eleitoral, fruto de uma campanha fortemente desvirtuada pela disseminação em massa de notícias falsas e aniquilamento de reputações, atos que não foram devidamente reprimidos pelo TSE.
As teorias da conspiração contra o modelo de apuração eleitoral, portanto, não passam de factoides alimentados por golpistas. São mantras da pós-verdade para questionar as urnas brasileiras sem nenhuma consistência.
A reimplementação do voto impresso abriria espaço unicamente para a vulnerabilidade do eleitor quanto a sua autonomia, hoje garantida pelo sistema no sistema de urna eletrônica, autonomia que voltaria a ser ameaçada em territórios dominados por milícias, organizações criminosas e pelos velhos coronéis do mandonismo eleitoral.
O “problema”, a bem da verdade, não está nas urnas eletrônicas, mas na origem das convicções políticas do presidente da República, que despreza a democracia, mas tem especial apreço por figuras como o torturador Brilhante Ustra, por policiais integrantes de milícias no Rio de Janeiro – muitos por ele já homenageados – e, não fosse tudo, por personagens como Beatrix von Storch, líder do partido nazista Alternativa para a Alemanha, com a qual reuniu-se recentemente no Palácio do Planalto, envergonhando o Brasil e agredindo especialmente a memória do povo Judeu. Quem assim pensa e age não tem compromisso com o Estado Democrático e de Direito.
É necessário, portanto, que a população e todas as instituições da República, como o Congresso Nacional, o Poder Judiciário e o Ministério Público assumam os seus papeis imediatamente, sem sofismar, e diante das ameaças e anúncios explícitos de golpe por parte do atual presidente atuem com a unidade e firmeza necessárias, evitando que o País, por irresponsabilidade de seu presidente, além da anunciada quebra institucional mergulhe em um retrocesso político, social econômico retrocessivo de efeito centenário, inclusive pelo virtual boicote de relações internacionais de nações amigas, em caso de ruptura das garantias democráticas.
Não é outro também o papel que espera das próprias Forças Armadas brasileiras, ao modo do que recentemente ocorreu nos Estados Unidos da América (EUA) diante do delírio golpista de Donald Trump, personalidade política quase siamesa do atual presidente do Brasil, quando as Forças Militares daquele país vieram a público, capitaneada pelo seu mais graduado agente, o general Mark Milley, em documento subscrito por outras autoridades de alta patente do serviço militar, repudiando a invasão ao Capitólio e as fake news de Trump, afirmando expressamente que qualquer ato para interromper o processo constitucional naquele país não era apenas contra as tradições, valores e juramento das Forças, mas também contra a lei, ao mesmo tempo em que reafirmaram o compromisso público de obedecerem às ordens legais da liderança civil, como fazem há 250 anos.
Página importante da História está sendo escrita no tempo presente e as biografias também. Os que lideram o Brasil neste tempo único de pandemia, permeada pela promessa de descambo para a uma ditadura, devem refletir sobre o espaço histórico que lhes serão reservados no futuro.
É preciso também que todos os partícipes desse tempo aprendam com o passado recente a não mais transigir com as regras democráticas, a não flexibilizar garantias constitucionais de caráter social e político que deram na abertura de portas, na oportunidade para o surgimento de falsos mitos e inimigos declarados da democracia, propiciando que as instituições republicanas se tornassem, ao fim e ao cabo, o próprio alvo declarado desses aventureiros.
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Germano Siqueira é Juiz Titular da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza; presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) no biênio 2015/2017
João Ricardo Costa é Juiz de direito da 16ª Vara Cível de Porto Alegre; presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) na gestão 2013/2016