Perícia atesta omissão de promotores e juízes na chacina da favela Nova Brasília

Perícia realizada em 2016 nos inquéritos e processos judiciais da chacina da favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, revelou “o descaso e a morosidade construídas, promovidas e praticadas pelas autoridades policiais e secundadas por membros do Ministério Público e do Poder Judiciário”.

O desembargador aposentado Caetano Lagrasta Neto, do Tribunal de Justiça de São Paulo, atuou como perito indicado pelo CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) –organização não-governamental– no julgamento em que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Lagrasta Neto sustenta que o objetivo das investigações foi obter o arquivamento ou a extinção dos processos com a prescrição, resultado da “sucessão de atos morosos e inúteis”, que causaram “tumulto procedimental e a impunidade dos criminosos”.

Nesta terça-feira (17) foram absolvidos os cinco policiais acusados de matar 13 pessoas durante operação na favela Nova Brasília, em 1994. O júri reconheceu a existência do crime, mas não a autoria dos réus. O Ministério Público pediu a absolvição dos policiais por falta de provas.

O laudo constata uma distorção comum nas investigações de chacinas e morticínios que induz a ‘falsa absolvição’: a destruição da cena do crime.

O inquérito foi promovido com base em notícia de “resistência oferecida por quadrilha armada que explorava o tráfico ilícito de entorpecentes na localidade de Nova Brasília, no Complexo do Alemão, com eventuais mortes”.

O procedimento foi instaurado para apurar, primeiro, o “crime de resistência” e não as circunstâncias das mortes. O laudo pericial evidencia que não houve confronto, mas  execução das vítimas.

Treze laudos de exame cadavérico referentes à chacina de 1994 apontam que nove entre as treze vítimas fatais foram atingidas por projétil de arma de fogo na cabeça, e sete nas costas.

“Uma das vítimas apresentava em cada um dos globos oculares ferimento com característica de entrada de projétil de arma de fogo, indicando que havia sido alvejado em cada um de seus olhos”.

Além de provas destroçadas e induzidas, a demora nas investigações resultou numa inversão perversa: os criminosos, que agiram com crueldade, foram transformados em “vítimas de tortura”.

Decisão judicial de 2015 determinou o arquivamento por ausência de justa causa para a ação penal e a invalidação das provas produzidas depois do desarquivamento do inquérito. O juiz considerou que “o Ministério Público estaria agindo contrariamente à decisão judicial que decidiu pelo arquivamento anterior”.

O magistrado identificou “evidente tortura psíquica por parte do Estado em detrimento dos indiciados”. Segundo o juiz, “estão os indiciados sofrendo inegável e inaceitável constrangimento ilegal, já que expostos, nos últimos 19 anos, a torturante situação vexatória”.

Reportagem da jornalista Ana Luiza Albuquerque, da Folha, revelou, no último domingo (15), que “o episódio de Nova Brasília é um dos exemplos mais simbólicos da inércia da Polícia Civil, do Ministério Público e da Justiça para investigar e, eventualmente, acusar e punir policiais envolvidos em operações com mortes”.

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Eis as conclusões do laudo pericial de Caetano Lagrasta Neto:

  1. Quando se inicia a leitura desta denúncia, não se acredita descobrir procedimentos da Polícia Judiciária eivados de tantos abusos e vícios, capazes de diagnosticar a precariedade imposta à Justiça Penal, durante mais de 20 anos.
  1. A reponsabilidade –ao contrário do que se possa imaginar– é devida não só às armadilhas legais, mas também à conduta dos diversos órgãos e autoridades públicas competentes.
  1. Através da obstrução processual, com apoio de autoridades do Judiciário e do Ministério Público, acabam por conduzir o sistema criminal aos despachos de arquivamento ou às sentenças –despidos de fundamento, em contrário a princípio constitucional– que decretem a prescrição dos crimes, inclusive por desaparecimento de cadáveres, como coroamento da mais absoluta impunidade, servindo aos intuitos da ditadura civil-militar, no massacre aos opositores daquela espécie de regime;
  1. A partir da formalização irregular de perseguição a suspeitos, chega-se a inquéritos por meio de ‘autos de resistência’, sem fundamento legal que pretendem justificar as invasões e atrocidades, momento em que produzidas as execuções. Não há negar o tumulto e a obstrução dos procedimentos, através da remoção indiscriminada de cadáveres com a destruição da cena dos crimes, tornando a colheita de provas praticamente inexistente, nada obstante a evidência, através de veementes indícios; acresce o emprego da chamada ‘lei do silêncio’, com ameaças à incolumidade física de possíveis vítimas ou testemunhas, inclusive por manter os indiciados nas funções de agentes ou autoridades policiais;
  1. Os laudos, a exceção dos cadavéricos –ainda que sem a complementação adequada dos laudos de balística– diante da confusão instalada e atraso na reconstituição de locais ou através da apreensão de armas e sua correta identificação, origem, posse ou utilização, se por agentes ou vítimas, novamente remetem a que se trate de veementes indícios da prática criminosa;
  1. perícias de locais dos fatos não são anexadas aos autos ou o são tardiamente, enquanto que a mais importante, diante dos achados criminais, é levada a cabo por insistência e determinação de delegada da Corregedoria da Polícia, um mês depois, fazendo-se acompanhar por quatro peritos oficiais, nos locais indicados, onde finalmente restam razoavelmente constatadas a natureza e direção dos disparos a se constituir como outro indício veemente de que houve execução e não resistência; e, quanto ao procedimento, na fase do inquérito policial evidenciam-se diligências requeridas e deferidas inutilmente, reiteradas por uma sucessão de agentes policiais, sem quaisquer resultados palpáveis e em prazos absolutamente dilargados, coonestadas por promotores de Justiça e deferidas por juízes de direito, numa evidente inversão tumultuária dos atos e prazos processuais, sempre no intuito de procrastinar e obstruir os atos de investigação”;
  1. Lastimavelmente, a apreciação dos autos já faz prever que além desta morosidade procedimental, em verdadeira obstrução à aplicação da Justiça, descuraram o país e aquele Estado de promover efetiva perseguição aos criminosos, deixando de explicar a desfaçatez na promoção de investigações tortuosas, onde os reiterados atrasos e diligências absolutamente inúteis, e despidos de qualquer resultado prático, pudessem resultar, sequer na observância de princípios constitucionais dirigidos à defesa dos direitos humanos ou na plena satisfação das vítimas e de seus familiares.
  1. Violência sexual. As evidências demonstram, de forma induvidosa, que a prática de crimes, como os aqui periciados, prossegue até o momento, sem que tenha havido intervenção segura e eficaz, por parte dos governos federal e estaduais, na busca de políticas públicas que, ao garantir o mínimo existencial, corolário do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, impeçam a prática criminosa por agentes do Estado e a respectiva impunidade, circunstâncias que seriamente comprometem a imagem do Brasil.  No caso das vítimas de violência sexual, mesmo após terem prestado depoimento logo após os eventos, e reconhecido os policiais perpetradores das violações que sofreram, jamais tiveram qualquer resposta judicial para garantir seus direitos de proteção, punindo seus violadores ou garantindo-lhes reparações. De fato, mesmo após todos esses anos de impunidade, o Ministério Público estadual as arrola como testemunhas em um processo que investiga os homicídios, sem qualquer medida de proteção e garantia de sua integridade, em um processo que lhes revitimiza e seguramente lhes afasta do sistema de justiça que, ao que tudo indica, pouco lhes protege.”