Contrabandos, jabutis e segurança jurídica na Medida Provisória 1.045
Sob o título “O relatório de conversão da MP 1.045/2021: uma (es)quadra de erros”, o artigo a seguir é de autoria de Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade. (*)
*
Reincidir no erro é falhar duas vezes. Já repetir dois erros performa uma quadra de equívocos, e as coisas começam a ficar bem mais sérias. Pois bem: o relatório parlamentar da MP 1.045/2021 [Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e consequências da Covid-19 nas relações de trabalho] já aprovado pela Câmara dos Deputados, reedita políticas previstas na Lei 14.020/2020, a qual teve origem na MP 936/2020.
À altura, o relatório parlamentar de conversão dessa MP em lei buscava inicialmente enxertar diversas matérias estranhas ao tema original. Isto agora se repete, na discussão parlamentar da MP 1.045.
Naquela ocasião, como a prática já era suficientemente reconhecida como indevida, os “contrabandos” foram posteriormente retirados e apenas se mantiveram emendas na matéria pertinente.
Agora, os enxertos receberam aprovação pela maioria do Plenário da Câmara, com aprovação do Relatório inchado, e o faz em desrespeito à regra constitucional que obriga respeito ao objeto e finalidade do diploma original. Erra na forma e no conteúdo, mais uma vez.
No lugar da sempre pretendida “segurança jurídica”, o relatório reedita a censurável estratégia dos “jabutis” legislativos, que vem sendo repelida nos últimos anos: inseriu a fórceps, no texto original, matérias estranhas ao tema de fundo da medida provisória.
Na espécie, entranham-se enxertos que propõem a criação, a qualquer tempo, de amplos programas e impõe modificações de diversos artigos da legislação trabalhista em vigor, resgatando propostas já superadas, e sem qualquer relação com objeto e finalidade da MP original.
Além de precarizar o sistema de fiscalização, diminuir autonomia do Ministério Público e estender jornadas, o relatório avança em campos ainda mais grotescamente diversos, dispondo sobre Juizados Especiais, exames periciais, assistência judiciária e honorários sucumbenciais.
A prerrogativa de apresentação, no curso do processo legislativo, de emendas é inerente ao exercício da atividade parlamentar. Mas não é absoluto. Trata-se de consequência necessária da efetiva participação dos membros das Casas na elaboração das leis.
A efetiva participação do Parlamento faz-se a partir do circuito de integração em comissões, com apreciações sucessivas sobre diferentes óticas. Mas jamais deveria se confundir com a própria iniciativa legislativa, muito menos na hipótese de conversão de MP.
A prática dos contrabandos diminui o Parlamento e enfraquece o regime democrático. Aliás, a tentativa de inserir temas estranhos ao texto original de medida provisória não é nova. O STF já teve oportunidade de reconhecer a inadequação do procedimento, por agredir expressos dispositivos da Constituição.
No julgamento da ADI n. 5.127, declarou-se que a prática dos “jabutis” viola o devido processo de tramitação legislativa e descumpre o compromisso democrático anotado na Constituição.
O original relatório, agora aprovado pela Câmara, está para apreciação ao Senado no momento em que concluímos este texto. Nossa esperança para esse “recomeço” legislativo é de que o Senado da República mantenha a sua coerência e, mais uma vez, lancete as adições absolutamente impróprias feitas no texto da MP n. 1.045/2021.
Ou será isto, ou será mesmo a evidência cabal de que o Direito do Trabalho tem, diante de si, uma esquadra hostil, altamente articulada, que pretende simplesmente o reduzir a platitudes normativas.
Oxalá não seja isto.
(*) Guilherme Guimarães Feliciano, juiz, é professor associado do Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito Penal pela USP. Doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP. Titular da Cadeira n. 53 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2017-2019).
Rodrigo Trindade, juiz, é professor universitário e de cursos jurídicos. Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Ex-presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (2016-2018).