Hora de dissipar a tensão política e retomar a harmonia institucional
Sob o título “A entropia institucional: militarismo, militância ideológica e ‘democracia militante'”, o artigo a seguir é de autoria de Marcelo Malheiros Cerqueira, Mestre em Direito pela UFMG e em Direito Constitucional pela Universidade de Sevilha (Espanha), e procurador da República.
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Com frequência cada vez maior, noticia-se nos meios de comunicação uma tenebrosa possibilidade de ruptura institucional. A seriedade desse risco merece ser considerada à luz de três fenômenos do nosso panorama político-social, os quais contribuem para a atual escalada da tensão entre os Poderes.
O primeiro deles é o militarismo. A ocupação de cargos civis por militares, ao menos em grande escala, é problemática. Segundo a Constituição, as Forças Armadas se destinam à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
A partir do momento em que se oferecem milhares de cargos civis a militares, sua submissão aos propósitos constitucionais pode se subverter em uma ideia de manutenção de privilégios e vantagens. Porém, o problema maior da militarização governamental é a sua correlação com a possibilidade da eufemística ruptura institucional.
Ao agraciar militares com cargos e vantagens, o governante pode, a todo momento, se valer do trunfo de ter as Forças Armadas ao seu lado para as suas mais diversas obstinações, mesmo que venham a ser ilegítimas. Assim, o braço armado do Estado pode vir a ser manipulado, via inconstitucional intervenção militar, para assegurar a manutenção arbitrária de poder.
O segundo fenômeno digno de atenção envolve a militância ideológica de caráter binário que tomou conta do Brasil nos últimos anos. As ideologias, especialmente em suas versões extremadas, cuidam de varrer para debaixo do tapete toda a complexidade do mundo em prol de diagnósticos simplistas ou conspiratórios.
Os fatos prestam antes subserviência à filiação ideológica – seja ela de direita ou de esquerda – do que à sua análise racional. O radicalismo ideológico, quando agasalhado pelos detentores do poder, faz simbiose com eventuais pretensões golpistas. Fracassos na gestão pública podem ser facilmente convertidos em narrativa ideológica para atribuição de culpa a terceiros.
Aos adeptos da narrativa, ela vale como presunção ‘iure et de iure’. A partir daí, cria-se um ciclo vicioso: erros de gestão da coisa pública acirram o cenário de crise, o qual é combustível para o ódio ideológico; este, por sua vez, deixa cada vez mais turva a noção republicana que deveria orientar o povo no controle e na escolha de seus representantes.
O apogeu desse ciclo é a falência institucional e cívica, ambiente perfeito para oportunismos ilícitos.
Finalmente, o terceiro fenômeno presente na nossa conturbada conjuntura político-social consiste na alardeada necessidade de serem contidos arroubos autoritários e discursos antidemocráticos. O problema, nesse caso, está no alcance que se pretende dar a tal “democracia militante”.
É evidente que o regime deve se defender contra condutas e ameaças de caráter violento às suas instituições. Porém, poderia ele cercear simples manifestações de pensamento de cunho antidemocrático, mesmo que despidas de apelo à violência ou à grave ameaça? Ou, ainda, serviria para validar decisões arbitrárias tomadas por um dos três Poderes, em nome da sua autopreservação?
Por mais que se tente argumentar em sentido diverso, o selo da “democracia militante” não legitima abusos das prerrogativas institucionais.
Se um dos Poderes se vê no direito de extrapolar suas competências constitucionais, ele acaba, no frigir dos ovos, dando munição aos demais para fazerem o mesmo. As regras do jogo devem ser as mesmas para todos.
O otimismo nos acalenta com a esperança de que militarismo, militância ideológica e “democracia militante” formariam apenas um jogo de palavras: uma espécie de trava-língua simbólico da nossa imaturidade constitucional e cívica, da nossa incapacidade de entender a democracia para além de um regime político.
Democracia é um modo de vida, o melhor meio de conviver em sociedade. A solução passa necessariamente pelo aprimoramento das nossas cognições morais e republicanas, o que é tarefa árdua e de longo prazo.
No momento, precisamos dissipar a tensão política e retomar mínima harmonia institucional. Mas, se formos tomados por anseios imediatistas, aprofundaremos as divergências e contribuiremos para a mais profunda desordem. E, aí sim, todo cuidado é pouco: a entropia institucional pode se converter, a qualquer momento, na entropia do golpe.