Juízes paulistas que não tomaram vacina rejeitam controle para entrar nos prédios
Magistrados que não tomaram vacina anti-Covid resistem à obrigatoriedade de comprovar a imunização para ingressar em prédios do Judiciário, como determina o Tribunal de Justiça de São Paulo.
O grupo –cerca de 20 juízes, inclusive desembargadores– pediu ajuda à Apamagis (Associação Paulista de Magistrados). Eles entendem que o tribunal deveria respeitar a liberdade de cada magistrado. Pretendiam que a Apamagis questionasse a determinação do TJ-SP. A associação confirma que foi procurada. Mas não se pronuncia a respeito.
A presidente da Apamagis, juíza Vanessa Mateus, sugeriu a um membro do grupo tentar abrir o diálogo com o tribunal, propondo uma audiência com o presidente, desembargador Geraldo Pinheiro Franco. A audiência não chegou a ser agendada. Os juízes desistiram da ideia.
Em junho de 2020, ao prorrogar o prazo de vigência do sistema remoto de trabalho, o TJ-SP emitiu resolução afirmando que “a preocupação maior da corte, como de todo o Poder Judiciário, é com a preservação da saúde de magistrados, servidores, colaboradores, demais profissionais da área jurídica e do público em geral”.
Esses juízes, considerados conservadores, agiriam por ideologia ou descrença na eficácia da vacina. São vistos por colegas como bolsonaristas.
Entre os magistrados que consultaram a Apamagis estão juízes vinculados ao Movimento Magistrados para a Justiça, grupo que lançou, em 2015, um blog com o propósito de oferecer “uma visão conservadora de temas relacionados ao Direito”.
O movimento se apresentava com o objetivo de “discutir a atual situação do Poder Judiciário nacional ante a gravíssima crise de valores que atinge toda a nossa sociedade, no intuito de buscar meios de preservar a magistratura brasileira de perder a independência funcional de que gozam seus juízes”.
O blog do Movimento Magistrados para a Justiça publicou textos do desembargador Ricardo Henry Marques Dip e do juiz de direito Marcelo Ricci.
Ambos são mencionados por magistrados como membros do grupo que procurou a Apamagis.
Por intermédio da Apamagis, o Blog colocou o espaço à disposição do grupo para expor suas razões. Eles não quiseram se manifestar.
Teste para o TJ-SP
O TJ-SP publicou no dia 10 de setembro dois provimentos, editados pelo Conselho Superior da Magistratura, regulamentando o sistema escalonado de retorno ao trabalho presencial e os reflexos de imunização contra a Covid-19 abrangendo magistrados e servidores. (*)
O provimento CSM 2.628/21 detalha as medidas implementadas a partir de 20 de setembro. A falta de demonstração da vacinação (ou óbice) deve ser comunicada pelos superiores hierárquicos à Corregedoria-Geral (em relação a juízes) e à presidência do TJ-SP (quando envolve desembargadores).
O tribunal informa que continua recebendo mensagens dos magistrados comprovando a vacinação. Ainda não dispõe de números consolidados sobre o atendimento à norma.
A resistência de magistrados ao provimento será um teste para o tribunal.
“Magistrados e servidores sujeitar-se-ão às consequências legais e administrativas em caso de comparecimento para o trabalho presencial sem estarem vacinados, embora inseridos em faixa etária ou grupo de prioridade que já foram objeto de imunização, e sem terem comprovado, por relatório médico justificado, o impedimento à vacinação”, prevê a determinação do TJ-SP.
Decisões conflitantes
Além do risco de transmissão da Covid-19 por juízes, eventualmente constrangendo servidores e usuários da Justiça, há dúvidas se magistrados que não seguem as normas da Organização Mundial de Saúde (OMS) devem tomar decisões envolvendo a pandemia e a saúde pública.
Em março deste ano, o juiz Charles Bonemer, de Franca (SP), concedeu liminar pleiteada por donos de lotéricas para o funcionamento desses estabelecimentos, apesar de decreto municipal que proibia a abertura. O juiz emitiu seu entendimento sobre o lockdown, que considerava inútil, e registrou em sua decisão: “não adotamos o regime comunista”.
O magistrado é citado como um dos juízes do grupo que consultou a Apamagis.
O site Migalhas destacou o seguinte trecho da liminar do juiz Bonemer:
“Quais são os direitos humanos fundamentais expressamente reconhecidos pela Constituição Federal, dos tantos que vêm sendo violados sistematicamente durante essa pandemia, que interessam à presente impetração? Logo no artigo 1º, IV, lê-se que a República tem, como um dos seus fundamentos, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Ou seja, não adotamos o regime comunista, de planificação estatal. Os impetrantes buscam defender esses valores, a autoridade coatora, neste decreto, não.”
Em julho de 2020, foi divulgado o episódio em que o desembargador Eduardo Siqueira, do TJ-SP, ofendeu e tentou intimidar um guarda municipal, quando circulava na orla de Santos sem usar máscara anti-Covid. O TJ-SP determinou –num domingo– a instauração imediata de procedimento de apuração dos fatos.
O tribunal requisitou as gravações e pretendia ouvir em seguida os guardas-civis e o magistrado que deu uma carteirada. Mas o então corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, instaurou, de ofício, ou seja, sem provocação externa, pedido providências. Os dados levantados pelo TJ-SP foram enviados ao CNJ. Martins atribuiu a unificação dos procedimentos à necessidade de “racionalização e eficiência”, evitando decisões conflitantes, atrasos e “confusão processual”.
Aparentemente, houve conflitos, atraso e confusão processual num caso que provocou enorme comoção pública. Em abril deste ano, o TJ-SP prorrogou, a pedido da defesa, um processo disciplinar contra Eduardo Siqueira. Seus advogados sustentaram no requerimento que o desembargador encontrava-se internado em clínica psiquiátrica particular para tratamento de dependência química.
Protestos da advocacia
A advocacia também questiona o TJ-SP. O Judiciário e o Ministério Público têm emitido sinais de aprovação ao controle pretendido pelo tribunal paulista. O TJ-SP informa que não recebeu orientação ou resolução do Conselho Nacional de Justiça sobre essa questão.
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Og Fernandes indeferiu habeas corpus de um advogado que não se vacinou e queria ter livre acesso aos fóruns paulistas, sob alegação de violação de direito de locomoção e impedimento do exercício profissional.
A corte paulista editou portaria que condiciona o ingresso em seus prédios à apresentação de comprovante de que a pessoa tomou, pelo menos, uma dose da vacina contra a doença.
No habeas corpus, o advogado sustenta que teria sido imunizado de forma natural após se recuperar da Covid-19, fato que o colocaria em patamar de igualdade com as pessoas vacinadas – ou até em posição superior, em termos de imunização.
Fernandes explicou que o STJ não pode analisar normas em abstrato. De acordo com a jurisprudência do STJ, o habeas corpus não constitui via própria para o controle abstrato da validade de leis e atos normativos em geral, previsão também fixada na Súmula 266 do Supremo Tribunal Federal.
Reconhecendo o manifesto descabimento do pedido, o relator considerou inviável a análise do habeas corpus.
O Ministério Público do Estado de São Paulo, por sua vez, indeferiu representação de um advogado que questionou a obrigatoriedade do comprovante de vacinação contra covid-19 para ingresso nas dependências do Poder Judiciário paulista.
O subprocurador-geral de Justiça Wallace Paiva Martins Junior requereu o arquivamento do procedimento. Em seu parecer, ele registra que a lei federal possibilitou às autoridades determinar a vacinação compulsória, para o enfrentamento da pandemia, estabelecendo que cabe aos gestores locais de saúde a sua adoção, e que o descumprimento da determinação deve acarretar a responsabilização.
Martins Júnior cita entendimento do Supremo Tribunal Federal, que considerou ser possível a imposição de medidas indiretas para instar as pessoas a se vacinarem.
“Noutros termos, há fundamentos constitucionais e legais a amparar a conclusão de que a exigência de vacinação contra a Covid-19 pelo Poder Judiciário paulista para ingresso nas suas dependências configura medida legítima”, opina o subprocurador-geral.
O Blog mantém o espaço à disposição dos magistrados que contestam os provimentos do TJ-SP.
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(*) Provimento CSM 2.628/21 e Provimento CSM 2.629/21