O Ministério Público é advogado da sociedade ou serviçal do Congresso?

O advogado Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado, afirma que, se a PEC 05/2021 for aprovada, o Ministério Público poderá ser transformado numa “instituição subalterna a interesses políticos”.

“Talvez os piores.”

“Estamos diante de uma possível afronta ao princípio da autonomia funcional”, diz.

No seu entender, esse desrespeito a uma garantia política “deverá levar ao ajuizamento de mandado de segurança contra o chefe do Ministério Público da União”.

Eis a íntegra de seu artigo, sob o título “Uma afronta a uma garantia institucional“.

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Não é de hoje que a classe política brasileira se julga incomodada pela atuação do Ministério Público.

A operação Lava Jato, que teve um final recentemente, trouxe para a sociedade as vísceras da corrupção política no Brasil mesmo diante de excessos cometidos com afrontas ao devido processo legal.

A afirmação de um remédio como a delação premiada, na linha sucessória dos martírios trazidos aos investigados desde a Ordenação Filipina, em 1603, de onde surgiu, trouxe sérias feridas no corpo da política e ressentimentos que a levaram a atingir a Instituição permanente, que, nos moldes da Constituição de 1988 é um advogado da sociedade.

A PEC 05/21 é um exemplo claro disso.

Se a PEC 05/2021 for aprovada como está no relatório apresentado ontem de tarde será o fim no Ministério Público como o conhecemos desde a Constituição de 88.

Como noticia a imprensa, proposta muda a composição do Conselho Nacional do Ministério Público e dá a ele poderes de rever atos do MP.

O advogado Marcelo Knopfelmacher vê a medida como “extremamente preocupante”, especialmente pelo fato de dar ao CNMP poder de anular atos de promotores e procuradores.

“Permitir a revisão de atos dos membros do Ministério Público pelo CNMP equivale a admitir que o Conselho Nacional de Justiça (órgão externo de controle da magistratura e também com composição política), pudesse rever decisões judiciais fora da competência dos tribunais. A comunidade jurídica, para o bem dos brasileiros, não pode aceitar o desmonte do Ministério Público.”

Se tal proposta for aprovada o Parquet voltará a ser operado por interesses muito mais abrangentes do que aqueles que a regiam no Brasil antes de 5 de outubro de 1988. A essa época ele era um verdadeiro serviçal do poder. O que é muito pior: poderá transformá-lo em uma instituição subalterna a interesses políticos. Talvez os piores.

A proposta tem pontos intransigíveis:

a) O Congresso Nacional seria o único órgão responsável por indicar o corregedor-Geral do CNMP;

b) Como já acentuado, o Conselho pode anular atos de investigação promovidos por membros do Parquet;

c) Aumenta a composição do CNMP das atuais 14 cadeiras para 15 e diminui de 4 para 3 os conselheiros escolhidos pelo Ministério Público da União, aumentando a influência do Congresso Nacional naquele Colegiado;

d) Impede que o procurador-geral da República tenha minoria nos votos no Conselho Superior do Ministério Público Federal. Assim, 2/3 das cadeiras daquele órgão colegiado de deliberação seriam escolhidos pelo procurador-geral da República.

O quadro é dantesco.

Com a PEC, o Conselho passa ter mais poderes por mudar até decisões, ou seja, acaba com a independência. Fora isso, pelo relatório, o Congresso poderá nomear quatro integrantes do Conselho, inclusive o corregedor nacional e o vice-presidente do CNMP. Hoje são dois membros, como bem lembrou Miriam Leitão, em abordagem para O Globo.

Tudo à sorrelfa.

Ora, estamos diante de uma possível afronta ao princípio da autonomia funcional.

Não se pode falar, diante da Constituição de 1988, em um Ministério Público dependente.

Diante da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público está consagrado, com liberdade, autonomia e independência funcional de seus órgãos, à defesa dos interesses indisponíveis do indivíduo e da sociedade, à defesa da ordem jurídica e do próprio regime democrático, como define o artigo 127 da Constituição.

Tem-se, portanto, o membro do Parquet, como agente público, a teor do artigo 127, § 1º e 128 e parágrafos) possui autonomia funcional.

Assim, em face das peculiaridades do Ministério Público, hierarquia, portanto, só se concebe num sentido administrativo, pela natural chefia exercida na instituição pelo seu procurador-geral (poderes de designação, na forma da lei, disciplina funcional, solução de conflitos de atribuições etc.). Não se pode cogitar, porém, de hierarquia, no sentido funcional.

Os poderes do procurador-geral encontram limite na independência funcional dos membros da instituição.

Não se pode impor um procedimento funcional a um órgão do Ministério Público, senão fazendo recomendação sem caráter normativo (Lei Complementar nº 40/81, artigo 11, II), pois a Constituição e a lei complementar, no caso a Lei Complementar nº 75/93 para o Ministério Pública da União, antes de asseguraram aos seus membros garantias pessoais, deram-lhe garantias funcionais, para que possam servir aos interesses da lei, e não ao dos governantes, como acentuou Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Curso de Direito Constitucional, 10ª edição, 1981, pág. 294).

Fala-se nos princípios da unidade e da indivisibilidade. Mas, data vênia, ainda assim vistas sob o ponto de vista hierárquico, são mitigadas pelos princípios de independência e autonomia funcional.

Os membros do Parquet são considerados agentes políticos, em situação totalmente diversa dos funcionários públicos em sentido estrito. É a posição dos agentes públicos investidos de atribuições complexas, nos vários âmbitos de poder e diferentes níveis de governo, cuja atuação e decisões exigem independência funcional, como ensinou Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo Brasileiro, 121ª edição, 1986, pág. 50 a 51).

Estamos diante de garantias administrativas e políticas da instituição (autonomia administrativa e funcional.

Há, portanto, uma garantia política que é a autonomia funcional para os membros da Instituição.

São garantias que se distinguem das prerrogativas. As garantias são das pessoas; as prerrogativas, na lição de Hely Lopes Meirelles (Justitia, 123:188, n. 17), “são atributos do órgão ou do agente público inerentes ao cargo ou a função que desempenha”.

Estamos diante do mesmo princípio do promotor natural, mas que agora sobre uma outra dimensão.

Entendo, salvo melhor juízo, que esse desrespeito ao magno princípio institucional deverá levar ao ajuizamento de mandado de segurança contra o chefe do Ministério Público da União.

Ora, a instituição permanente, Ministério Público, formada no ideário de uma Constituição-cidadão, que modulou nosso Estado Democrático de Direito, passaria a ser usada em causa própria de parlamentares, de políticos, sem escrúpulos, sem compromissos com o interesse público.

Ela passaria de advogado da sociedade a advogado dos piores interesses, desde os crimes patrimoniais, até a formas escabrosas de improbidade.

Como admitir um corregedor-geral da Instituição, à nível nacional, comprometido com perniciosos interesses?

A PGR divulgou nota, em 8 de outubro de 2021, que defende o aprofundamento de debate sobre o tema. Essa PEC, na verdade, deve ser democraticamente expurgada.

Afronta-se com essa famigerada PEC, que poderá ser firmada por representantes que não nos representam, na medida em que patrocinam seus interesses pessoais, uma garantia institucional, uma verdadeira cláusula pétrea.

A garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais, providos de um componente institucional que os caracteriza. Temos uma garantia contra o Estado e não através do Estado.

Estamos diante de uma garantia especial a determinadas instituições, como dizia Karl Schmitt. A vitaliciedade é uma garantia constitucional que protege o Judiciário e o Ministério Público e sua perda enfoca a instituição.

Ora, se assim é a garantia institucional na medida em que assegura a permanência da instituição, embaraçando a eventual supressão ou mutilação, preservando um mínimo de essencialidade, um cerne que não deve ser atingido ou violado, não se pode conceber o perecimento desse ente protegido.

J.H. Meirelles Teixeira prefere chamar de direitos subjetivos, uma vez que eles configuram verdadeiros direitos subjetivos. Tais direitos se configuram quando a Constituição garante a existência de instituições, de institutos, de princípios jurídicos, a permanência de certas situações de fato.

São características desses princípios, consoante apontados por Karl Schmitt:

a) são, por sua essência, limitados, somente existem dentro do Estado, afetando uma instituição juridicamente reconhecida;

b) a proteção jurídico‐constitucional visa justamente esse círculo de relações, ou de fins;

c) existem dentro do Estado, não antes ou acima dele;

d) o seu conteúdo lhe é dado pela Constituição.

Penso que a Constituição não deixa margem de mudança dos direitos institucionais, garantias institucionais, por emenda constitucional, e muito mais ainda por lei ordinária.

As garantias institucionais, direitos institucionais, constituem direitos fundamentais.

Eis o quadro de tamanha gravidade para o Ministério Público, a quem cabe, dentre outras missões, à luz do artigo 129 da Constituição, zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.