Cegueira intelectual e veto às vacinas

Foto: Edson Ruiz/Folhapress
Frederico Vasconcelos

Sob o título “Luther King Jr, Ignorância e as Vacinas”, o artigo a seguir é de autoria do juiz federal Tarcísio Corrêa Monte. (*)

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O hábito de ler jornais de manhã cedo já vem de um tempo. Na faculdade, antes da aula, era o Valor Econômico, principalmente o caderno de Internacional. De uns tempos para cá, tenho lido mais a imprensa europeia. Talvez fosse melhor sair para correr na praia ou no parque nesse horário. Melhor para evitar ver como nosso mundo tem se tornado surreal.

Abro o site da Euronews da França: “La police italienne cible les antivax”. A matéria basicamente diz que “na Itália, a polícia invadiu as residências de 17 extremistas antivacinas. Eles são suspeitos de terem incitado as pessoas a cometer delitos contra personalidades de instituições públicas italianas, como o primeiro-ministro Mario Draghi.

A operação está ligada a um inquérito sobre ameaças feitas no grupo “Basta Dittatura” do app Telegram. Um chat que já foi encerrado devido ao seu conteúdo ilegal. Várias manifestações recentes contra o “Green Pass” tornaram-se violentas e causaram grande perturbação em muitas cidades italianas”.

Fecho o site então e procuro algo no La Repubblica para confirmar: “I No Vax commentano in diretta le perquisizioni: “Andiamo e lanciamo bombe”.

“Somos famosos”, escreviam no bate-papo, enviando um ao outro por mensagem a notícia da blitz policial de Torino. O canal voltou a chamar-se “chega de ditadura”, mas é novo, depois que o Telegram por ordem do Ministério Público ordenou o fechamento daquele em que havia indícios de protestos de rua e ameaças a pessoas públicas.

“Vamos acabar com toda a merda criminosa do Ministério Público de Torino, do antiterrorismo de Milão. “Devíamos todos ir debaixo do prédio para jogar bombas para que acabem com essa ditadura”.

A referência a símbolos tipicamente de extrema direita é clara, porém das buscas dos 18 suspeitos organizadas naquela semana em 16 cidades italianas, nenhuma ligação explícita a Forza Nuova ou a siglas neo-fascistas subversivas surgiu.

Vem-me à memória então o incrível livro “A dádiva do amor”, de Martin Luther King Jr, especificamente uma frase que me marcou: “não podemos sobreviver separados espiritualmente em um mundo geograficamente unido”.

Pego então o livro e reabro nos meus dois textos prediletos dele: “Amor em ação” e “Amar seus inimigos”.

Reflito sobre o que pensaria sobre todo esse momento que vivemos no mundo o maior ativista político da História dos EUA, que se tornou o ícone mais importante e herói do movimento dos Direitos Civis na década de 1950, até seu assassinato no fim dos anos 1960.

Os antivacinas, é de se reconhecer, alguns podem ser pessoas bem-intencionadas, alegam seu Direito Fundamental de Liberdade de não se vacinar. Outros afirmam que a vacina não funciona.

O segundo argumento parece não se sustentar. O pesquisador na Universidade de Yale Atila Iamarino, em artigo recente nesse jornal ‘Não faltam vacinas, faltam vacinados’ já afirma:

“Segundo o Office for National Statistics do Reino Unido, entre janeiro e setembro de 2021, não vacinados tiveram um risco 32 vezes maior de morrer por Covid do que os completamente imunizados. E segundo o Centro de Controle de Doenças dos EUA, quem pegou o novo coronavírus e se curou, mas não se vacinou, teve mais de cinco vezes mais chances de ter Covid novamente do que quem nunca pegou o vírus mas tomou as duas doses das vacinas.

Ou seja, até curados não estão tão protegidos quanto quem se vacinou e têm mais chances de ter e passar Covid”.

Então resta o argumento da Liberdade. Mas será que esta é absoluta?

Como bem mostra Michael Sandel em “Justiça”, Kant já dizia que esta tem limites. Não pode ser levada ao ponto de prejudicar os outros. Não posso ter a liberdade de guardar Plutônio-239 ou Urânio-233 e Urânio-235 em casa. O coletivo, pois, às vezes deve prevalecer em prol da proteção da própria sociedade.

Poderia então um médico não se vacinar e continuar trabalhando em uma UTI? Poderia então uma pessoa não se vacinar e continuar mantendo contato em locais públicos com pessoas idosas ou vulneráveis por terem alguma comorbidade? Mas e a tal Liberdade?

Na realidade, essa liberdade simplesmente não existe.

Na época da escravidão, um senhor de engenho tinha o Direito de Propriedade sobre seus escravizados. Poderia adrede jogar um cativo no forno se isso lhe aprouvesse. Tinha liberdade para isso. Esse é o nível de absurdo a que se pode chegar se procedermos a uma manipulação do discurso dos Direitos Civis às últimas consequências, invertendo sua verdadeira lógica. A ponto de quererem soltar bombas nas instituições na Itália!

Voltemos então ao gênio Luther King Jr para ver que todo esse ódio e ignorância não levam a nada.

É preciso ao contrário agir tendo em mente o que o mestre ensinou: altruísmo, empatia, não conformidade. Ter uma “mente rigorosa e um coração sensível”.

Vejamos alguns trechos dos sermões que mencionei acima:

“Quantas vezes nossas vidas são caracterizadas por uma alta pressão sanguínea de credos e uma anemia de atitudes”.

“Nada no mundo é mais perigoso que a ignorância sincera e a estupidez conscienciosa”.

“Diferentemente da cegueira física, que em geral é imposta aos indivíduos como resultado de forças naturais além de seu controle, a cegueira intelectual e moral é um dilema que o homem inflige a si próprio por seu trágico mau uso da liberdade e por seu fracasso em utilizar o máximo da sua capacidade mental”.

O que diria Luther King sobre o mundo atual? Difícil dizer. Provavelmente continuaria pregando o amor ao próximo, o altruísmo mesmo que perigoso e excessivo. Estaria consoante com o Liev Tolstói na esperança para perceber em Guerra e Paz que “quando a gente fala do sol, logo vê os seus raios”.

Ignorância e ódio nunca resolveram nada. Pois “Retribuir ódio com ódio só multiplica o ódio, acrescentando uma escuridão mais profunda a uma noite já desprovida de estrelas”.

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(*) Mestre e Doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Sevilha na Espanha. Linha de Pesquisa em Direitos Civis, Estado e Constituição.