Defensora dos direitos humanos, Kenarik Boujikian se aposenta
A desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo Kenarik Boujikian, que se aposentará no próximo dia 8, foi homenageada na última sessão de julgamento de que participou, no dia 25 de fevereiro. Ela completou 30 anos de magistratura. Ingressou na carreira em 1989, em Piracicaba (*).
Boujikian vai cumprir um período sabático e pretende se dedicar às atividades em defesa dos direitos humanos. Por sua atuação nessa área, acumulou prêmios e o reconhecimento de entidades nacionais e internacionais.
Durante a última sessão, o desembargador Alex Zilenovski –que preside o 1º Grupo de Câmaras de Direito Criminal do Tribunal– apresentou o currículo da homenageada e falou sobre sua personalidade:
“Intensa atuação na seara jurídica e em vários outros matizes da sociedade, marcando com tinta indelével sua forma de ver a vida e a coragem de sustentar e de lutar por aquilo em que crê”.
Em seu discurso, Boujikian afirmou: “Quando entrei, eram somente 29 mulheres [no TJ-SP]. Hoje, contamos com cerca de 900 e, para que isso ocorresse, houve muita luta. Não falo apenas do Judiciário, mas de todos os setores da sociedade”.
O presidente da 2ª Câmara de Direito Criminal, desembargador Luiz Fernando Vaggione, assim comentou a atuação de Boujikian:
“Trouxe-nos seus valores, suas crenças humanistas e liberais que sempre repercutiram no trabalho do nosso tribunal e iluminaram os nossos votos”.
O vice-presidente do TJ-SP, desembargador Artur Marques da Silva Filho, representou o presidente da Corte, desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças.
“Kenarik desenvolveu um trabalho muito profícuo. É uma juíza compenetrada”, afirmou Silva Filho.
O juiz substituto em segundo grau Marcelo Semer discursou, em nome dos amigos da magistrada.
“Foi uma dádiva tê-la conhecido. Você me ensinou a importância da jurisdição e a tenacidade dos princípios, tenho muito a agradecer e estou feliz de estar presente nesse momento, na coroação de sua carreira” afirmou Semer.
Boujikian teve sua atuação marcada pela disposição de enfrentar discriminações e incompreensões no Judiciário.
Os episódios mais recentes envolveram as tentativas de censura no CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Ela deixa a toga sem que o CNJ tenha levado a julgamento o procedimento instaurado pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, por haver criticado o fato de o presidente do órgão, ministro Dias Toffoli, ter definido o período da ditadura militar como um “movimento”.
Em um seminário na Folha, em outubro último, Boujikian disse que “um ministro do Supremo Tribunal Federal chamar de movimento um golpe reconhecido historicamente é tripudiar sobre a história brasileira”.
A magistrada recebeu apoio de juristas e especialistas, entre outros, Conrado Hübner Mendes, professor de Direito da USP; Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da FGV Direito SP, Marcelo Figueiredo, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, e Oscar Vilhena Vieira, diretor da FGV Direito SP.
Em nota de repúdio, a JusDH (Articulação Justiça e Direitos Humanos), uma rede nacional composta por entidades e organizações de assessoria jurídica a movimentos sociais, afirmou que a ação do CNJ “representa os tempos de retaliação ao pensamento progressista e a racionalização da atual estrutura do Judiciário brasileiro”.
O pedido de providências foi retirado de pauta por Toffoli na mesma sessão em que Martins recuou, ao arquivar procedimentos preliminares contra onze magistrados –entre eles Boujikian– que se manifestaram publicamente nas últimas eleições. A iniciativa do corregedor foi interpretada como censura prévia.
Boujikian disse que as postagens no Facebook não se identificam com qualquer tipo de dedicação político-partidária, citando, a seu favor, jurisprudência e doutrina.
Afirmou ao CNJ que “nunca realizou atividade político-partidária e jamais usou a jurisdição para fins político-partidários”.
Em 2011, ela foi membro do Grupo de Trabalho criado no CNJ para tratar de políticas públicas voltadas às mulheres encarceradas e às crianças nascidas em situação de encarceramento.
Em 2015, o TJ-SP abriu processo disciplinar contra Boujikian para apurar se a magistrada havia violado dispositivos legais ao apresentar baixa produtividade e atrasar o julgamento de processos quando atuou como substituta na corte, entre 2012 e 2014.
Na época, ela enfrentava problemas de saúde e pessoais.
Durante o julgamento, o então corregedor Hamilton Elliot Akel relatou que ele e o antecessor na corregedoria, José Renato Nalini, haviam sugerido à magistrada que se aposentasse, com o que a juíza não concordou.
Foi com base no aumento de produtividade da magistrada no primeiro semestre de 2015 que o desembargador Antônio Carlos Malheiros divergiu da maioria e fez declaração de voto pela suspensão do processo: “Note-se que a magistrada, independente passar por problemas de saúde e ordem pessoal, no primeiro semestre deste ano, teve sua produtividade aumentada”.
Sua defesa, por meio de nota, informou na ocasião que “os atrasos noticiados foram devidamente justificados no processo administrativo”. “É importante frisar que a magistrada usou seus períodos de licença-prêmio e férias para colocar seu acervo em dia; portanto, está com seu trabalho em ordem desde então.”
Em 2017, o CNJ anulou –por 10 votos a 1– a pena de censura aplicada à juíza, acusada de violar o princípio da colegialidade. Ela havia assinado decisões monocráticas libertando réus que estavam presos preventivamente por mais tempo do que a pena fixada.
Ao votar, o então corregedor nacional de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, afirmou:
“O Tribunal de Justiça de São Paulo agiu mal. Não agiu bem. E por que não agiu bem? Porque ele arruma uma desculpa estapafúrdia para censurar ao fundo e ao cabo a decisão meritória da juíza”.
Em 2017, Boujikian foi promovida por merecimento a desembargadora do TJ-SP. O ato foi assinado pelo então presidente do TJ-SP, desembargador Paulo Dimas Mascaretti.
O advogado Alberto Zacharias Toron comentou, na ocasião: “É com viva alegria que todos nós recebemos a notícia da promoção da desembargadora Kenarik. Não é, por outro lado, de se desprezar o fato de ter sido unânime a decisão que a promoveu. Enfim, o TJ-SP mostrou sua grandeza!”
Boujikian é fundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD), criada em 1991, da qual foi presidente e secretária executiva. Quando tomou posse como desembargadora, Celso Limongi, ex-presidente do TJ-SP e ex-membro da AJD, publicou artigo em homenagem à magistrada:
“Existem mecanismos para que o Judiciário avance. O importante, porém, é ter coragem para aplicá-los. Isso depende da visceral vocação de cada juiz, de cada desembargador, de cada ministro“.
[Kenarik] “de quem possa talvez dissentir em questões de política nacional, caracteriza-se pela coragem de aplicar a lei na medida certa, indistintamente para ricos e pobres”, escreveu o ex-presidente.
Limongi morreu em setembro de 2018. Em 2006, questionado pelo site Conjur se haveria empecilho em comandar o TJ-SP e ser filiado à AJD, ele afirmou:
“Não, pelo contrário. Ter perfil democrático não faz mal a ninguém”.
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(*) Kenarik Boujikian nasceu em Kesab, na Síria. É bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (turma 1984) e especialista em Direitos Humanos pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Foi advogada da Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap) e procuradora do Estado. Ingressou na Magistratura em 1989 e foi nomeada para a 34ª CJ (com sede em Piracicaba). Judicou nas comarcas de São Bernardo do Campo, Pilar do Sul e Cajamar. Foi promovida ao cargo de juíza substituta em 2º grau em 2011 e ao cargo de desembargadora em 2017.