Quando o presidente perde o juízo

Eduardo Muylaert, advogado criminal, é autor deste artigo. (*)

***

A hipótese de uma doença do chefe do Estado é uma das situações mais difíceis que a prática política e o direito constitucional têm que enfrentar. O homem público, como qualquer pessoa, está sujeito a problemas físicos e mentais, embora muitos relutem em aceitá-lo. Pouquíssimos governantes foram afastados por problemas de saúde, sendo o primeiro o rei George III da Inglaterra, no começo do século XIX, e o último o  presidente Bourguiba, da Tunísia, em 1987. Nesse caso foi preciso um golpe de estado para convocar uma junta médica.

A constituição dos Estados Unidos prevê que o vice assume se o presidente morrer, mas não falava nada de moléstia grave. A 25a. Emenda, de 1967, prevê sucessão em caso de incapacidade do titular do cargo. A francesa prevê o impedimento (empêchement), medida que não se confunde com o impeachment. É a situação em que um membro do executivo não consegue bem exercer suas funções, por razões de saúde física ou mental, entre outras. Em geral os chefes de Estado são assistidos por médicos militares que, portanto, estão sob seu comando e não costumam contrariá-los.

Alguns exemplos históricos ajudam a entender a questão.

Um homem sem sapatos e de pijama caminha sobre os trilhos do trem. Não muito grande, na casa dos sessenta, cabelos brancos em desalinho, traz o rosto ferido e ensanguentado. O trem com a comitiva presidencial tinha passado havia pouco. O funcionário da ferrovia que fazia a última ronda, naquela noite de 23 de maio de 1920, acha que se trata de mais um bêbado e o conduz meio sem modos à casa de um colega nas redondezas.

O homem, sabendo que não acreditariam nele, se apresenta como o presidente da república. A dona da casa repara que o hóspede tem os pés delicados, o que indicaria tratar-se de pessoa educada. Quando o episódio chega por telegrama ao trem presidencial, ninguém leva a sério, pois o presidente da França dorme tranquilamente na sua cabine, onde só deve ser acordado às sete da manhã. Chegam a contar todos os outros 53 passageiros, mas ninguém ousa incomodar o presidente. Sem resposta às suas batidas na porta, o camareiro a abre e vê a janela aberta e Paul Deschanel ausente. A janela do trem era baixa, para que a multidão pudesse saudar o chefe da Nação.

Tendo caído do trem, e se envolvido em outros episódios a denotar perturbação, o estadista acabou renunciando, depois de apenas sete meses na presidência. Os médicos concluíram que ele teve uma síndrome de Elpenor. A constituição francesa da época não cogitara da hipótese de um presidente incapaz, e assim não apresentava nenhuma solução para o caso.

Um homem alto, calça preta e camisa branca, mata outro em duelo. Era a manhã de 6 de maio de 1806. O motivo da disputa foi uma troca de insultos por causa de apostas de cavalos. Charles Dickinson atira primeiro e acerta Andrew Jackson no peito, perto do coração. Este, com costelas quebradas e sangrando, para surpresa geral atinge o adversário no abdômen com um tiro fatal. Depois disso, o vencedor se envolveria em mais de cem duelos e incontáveis brigas e agressões.

Vinte e três anos depois, Jackson foi eleito o sétimo presidente dos Estados Unidos, cuja efígie, não sem protestos, continua nas notas de vinte dólares. Ele promoveu a maior e mais cruel remoção de índios americanos, era um escravagista e apreciava o açoite em seus escravos e escravas. Considerado louco por muitos, ainda é admirado por parte dos americanos. Seus adversários o chamavam de burro, e ele usou isso a seu favor, tanto que o símbolo adotado por ele até hoje representa o Partido Democrata.

Foi clinicamente constatado que ele padecia de moléstias físicas e emocionais, com sintomas como enxaquecas fortíssimas, sangramento nos pulmões, infecções e dores causadas por balas recebidas em duelos. Ninguém pensou em removê-lo. Quando deixou o cargo, confessou dois arrependimentos: não ter matado um de seus adversários, e não ter enforcado outro.

Um homem confraterniza com seus admiradores, sem nenhuma das precauções recomendadas em época de pandemia. Ele teve contato com várias pessoas infectadas, mas não acredita no que dizem os médicos. É normal?

A Constituição brasileira prevê que o vice substitui o presidente no caso de impedimento, e o sucede, em caso de falecimento. O artigo 15 autoriza a cassação de direitos políticos em caso de “incapacidade civil absoluta”, o que gera enorme problema de interpretação.

No Código Civil de 1916, ainda em vigor quando editada a Constituição de 1988, eram considerados absolutamente incapazes “os loucos de todo o gênero”. Segundo o Dicionário de Psicanálise (Roudinesco e Plon), “quer ela seja chamada de furor, mania, delírio, fúria, frenesi ou alienação, quer o insano seja designado por um termo popular (doido, pancada, degringolado, maluco, biruta, tantã), a loucura sempre foi considerada como o outro da razão. Extravagância, perda do juízo, perturbação do pensamento, divagação do espírito, domínio das paixões, tais são as imagens dessa doença que atinge os homens desde a noite dos tempos”.

Aí veio o Código Civil de 2002, pelo qual, eram absolutamente incapazes “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento” para os atos da vida. Ocorre que, com o Estatuto do Deficiente de 2015, foram suprimidas várias disposições do Código Civil, de modo que absolutamente incapazes, hoje, são só os menores de 16 anos. Claro, é preciso ter 35 anos para disputar a presidência, 30 para o governo estadual, 21 para ser deputado e 18 para ser vereador. Pela lógica, portanto, nenhum desses pode mais ser considerado absolutamente incapaz.

O professor Zeno Veloso, em nota crítica, analisa: “Como se vê, além dos menores de dezesseis anos não há outros absolutamente incapazes no atual ordenamento jurídico brasileiro. A Lei n. 13.146/2015 veio quebrar um antiquíssimo entendimento: o que relacionava e vinculava deficiência mental com incapacidade jurídica.”

Talvez esteja na hora de o Congresso Nacional reformar essa parte do artigo 15 da Constituição, que na redação atual tornou-se inútil. Seria nosso equivalente à 25a. Emenda da Constituição americana. Melhor encontrar uma solução constitucional para os casos de impedimento por doença dos chefes do executivo, até para evitar que numa situação dessas surja uma medida de força que não se sabe onde vai parar. Melhor prevenir.

(*) Eduardo Muylaert atualmente escreve e trabalha em casa.