Tribunal paulista escolhe dirigentes numa eleição sem debates públicos

O Tribunal de Justiça de São Paulo –maior corte estadual do país– realizou eleições nesta quarta-feira (10), mas o assunto não despertou maior interesse entre os juízes de primeiro grau.

A escolha do atual corregedor-geral, desembargador Ricardo Mair Anafe, para comandar o tribunal paulista no próximo biênio foi um assunto que esteve longe dos grupos de debates formados por juízes da primeira instância.

As redes sociais estão caladas, disse um juiz. Segundo ele, os candidatos não empolgam, são conhecidos. Não houve debates entre os candidatos e nem confronto de propostas.

Anafe sucederá ao presidente Geraldo Francisco Pinheiro Franco, que fez uma gestão transparente. Tomará posse em janeiro.

É o quarto corregedor que chega à presidência, depois de José Renato Nalini (2014-2015), Manoel de Queiroz Pereira Calças (2018-2019) e  Pinheiro Franco (2020-2021). No período, apenas Paulo Dimas de Bellis Mascaretti (2016-2017) foi eleito presidente sem ter sido corregedor.

Num colégio eleitoral de 356 desembargadores, Anafe foi eleito em segundo turno, com 195 votos, contra 155 recebidos pelo vice-presidente, Luis Soares de Mello Neto (no primeiro turno, foram 175 e 164 votos, respectivamente).

O desembargador Guilherme Gonçalves Strenger foi eleito vice-presidente. Mestre em Direito Civil pela USP, preside a Seção de Direito Criminal, na qual foi muito atuante.

Strenger ganhou admiração dos pares ao rebater, em 2020, as críticas de ministros do Superior Tribunal de Justiça que acusaram o TJ-SP de afrontar a jurisprudência das cortes superiores ao agir com rigor excessivo em decisões na área criminal.

Em nota intitulada “Ainda há Juízes em São Paulo”, Strenger disse que o TJ-SP “jamais se curvará a pressões ou permitirá que membros de quaisquer Poderes da República venham atacar a independência funcional de seus magistrados”.

Foi uma resposta à notícia, então divulgada pelo STJ, afirmando que a Sexta Turma reconheceu “manifesta ilegalidade” na decisão do tribunal paulista, que manteve a condenação de um réu a um ano e oito meses de prisão devido ao tráfico de pequena quantidade de drogas.

O desembargador Fernando Antonio Torres Garcia foi eleito corregedor-geral da Justiça. Ele presidiu a Seção de Direito Criminal no biênio 2018-2019. Ao agradecer a votação recebida, Garcia disse que a corregedoria “terá um tom de auxílio e orientação aos nossos guerreiros magistrados de 1º grau”.

“Vou procurar, dentro das minhas forças e com o auxílio dos meus colegas do Conselho Superior da Magistratura, uma união efetiva entre os dois graus de jurisdição. O Poder Judiciário, diante de todos os ataques que vem sofrendo, em especial o Poder Judiciário bandeirante, só sobreviverá e só ultrapassará os limites desses ataques se estiver coeso e unido”, afirmou Garcia.

Na avaliação de um juiz de primeiro grau, entre as propostas de Anafe avultam questões que beneficiam apenas a segunda instância. O presidente eleito propôs mais um assessor para os gabinetes dos desembargadores. Grande parte dos gabinetes dos juízes sequer possui os dois assistentes a que têm direito, diz.

Outro juiz de primeira instância criticou duramente a falta de debate público. Diz que foi a pior eleição desde que entrou na carreira. Não se falou nada, durante a campanha, sobre o primeiro grau. Há, segundo ele, um distanciamento absoluto entre a administração e o que é administrado.

Para um membro do Ministério Público paulista, foram eleitos para comandar o TJ-SP magistrados estimados e respeitados.

Embora a disputa tenha sido acirrada, o resultado, de um modo geral, não surpreendeu. Anafe é visto como um dos desembargadores mais capacitados. É considerado muito altivo, respeitador das instituições (o ex-presidente Ivan Sartori, por exemplo, dizia que não responderia ao Conselho Nacional de Justiça).

Anafe sempre se destacou por não temer desagradar. Em janeiro de 2020, ao assumir a Corregedoria-Geral, ele publicou comunicado no Diário Oficial alertando os juízes estaduais sobre a exigência de cumprirem os deveres de assiduidade e pontualidade.

Com base em decisão proferida em 2006 pelo Conselho Superior da Magistratura, Anafe lembrou que esses deveres impõem –“sob pena de responsabilidade funcional”– o comparecimento diário e a permanência nas dependências do fórum no período mínimo das 13 às 18 horas. Mesmo sendo uma medida antiga, alguns juízes viram a publicação no Diário Oficial como um recado para os juízes baterem ponto.

Ao anunciar o resultado da votação nesta quarta-feira, Pinheiro Franco disse que as eleições revelaram um “clima de camaradagem, seriedade e congraçamento”.

Uma consulta a vários magistrados, sob o compromisso de terem seus nomes preservados, revela outro cenário.

O clima estava difícil entre os candidatos. Houve um silêncio geral durante a campanha sobre o fato de que o Órgão Especial do tribunal, por 22 votos a 3, instaurou em agosto processo disciplinar contra o terceiro candidato à presidência, desembargador Carlos Henrique Abrão, acusado de alterar acórdãos e súmulas.

O processo disciplinar –que está suspenso por liminar do CNJ– foi aberto com o votos dos outros dois concorrentes à presidência, Anafe e Luís Soares.

Abrão atribuiu a instauração do processo disciplinar a “perseguição política” do relator do caso, presidente Pinheiro Franco, para minar sua candidatura. Nesta eleição, obteve apenas oito votos, no primeiro turno. É o dobro do que recebeu em 2019, quando contou somente quatro votos ao disputar a eleição ganha por Pinheiro Franco.

No segundo turno, Luís Soares perdeu nove votos que havia recebido na primeira etapa.

No final de outubro, a Apamagis (Associação Paulista de Magistrados) retirou do site uma entrevista com o vice-presidente do TJ-SP, Luis Soares de Mello, magistrado benquisto na entidade. O corregedor Anafe havia escrito um texto mais longo. Como os três candidatos não chegaram a um acordo sobre a redução ou o aumento dos textos, para haver a paridade, a associação optou por não publicar nenhum deles.

O processo eleitoral do TJ-SP, como diz um juiz, não é feito com debates, diagnósticos e propostas bem delineadas. É  um jogo de compadres, ironiza. Todos já sabem de antemão, desde a data da eleição antecedente, quem serão os próximos candidatos. Segundo ele, o tribunal paulista é uma instituição que teima em não entrar em tempos republicanos e democráticos. O juiz estende a crítica à Apamagis, que segue a prática da candidatura de chapa única, impedindo-se qualquer renovação.

Uma consulta informal a juízes de primeira instância, realizada às vésperas da eleição de Pinheiro Franco,  em 2019, revelou a previsão de que a sua administração adotaria um perfil “linha dura” em relação a questões disciplinares.

A gestão que se encerra em dezembro foi muito criticada por decisões que envolviam a polêmica questão sobre a independência dos juízes e o poder disciplinar das corregedorias.

Num desses julgamentos em que o CNJ revogou a pena aplicada a um juiz de vara criminal pelo tribunal paulista, o presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), advogado Hugo Leonardo, disse que o TJ-SP promove uma cruzada contra juízes garantidores de direitos individuais para impor o pensamento punitivista da corte. “Juiz não é responsável pelo combate ao crime”, afirmou.

Na mesma linha, Valdete Souto Severo,  presidente da AJD (Associação Juízes para a Democracia), criticou a instauração de processos administrativos contra juízes acusados de proferir decisões com “viés ideológico”. Para a AJD, trata-se de “tentativa de patrulhamento ideológico”, com o objetivo de moldar a magistratura, retirando-lhe a independência.

Um desembargador aposentado diz que as eleições deixam sempre a ideia de renovação, que logo será frustrada, pois o Poder Judiciário depende do Executivo estadual e de um orçamento que não atinge a verdadeira independência e autonomia financeira e administrativa garantida pela Constituição.

Ele diz temer, como das vezes anteriores, que os eleitos pouco possam trazer de modernidade ou consciência absoluta da missão judicante.